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Em cartaz, 96 minutos que abalaram o mundo

Filmado em um único plano-seqüência de 96 minutos, sem cortes, Arca Russa é um marco recente da cinematografia mundial. Com técnica digital, produção de Aleksandr Sokúrov entra hoje em cartaz

Por Agencia Estado
Atualização:

Antes de Aleksandr Sokúrov, Hitchcock havia tentado fazer um longa-metragem em uma única tomada. Mas, dadas as limitações técnicas da época, Festim Diabólico não passa de um falso plano-seqüência. Os cortes são quase imperceptíveis, mas estão lá porque era impossível filmar com película sem cortar quando terminava um rolo. Com técnica digital, Sokúrov conseguiu esse feito - um filme de 96 minutos sem um único corte. O resultado é Arca Russa, que estréia hoje. Não se trata apenas disso, é claro. À novidade tecnológica, segue-se um sentido artístico exigente e uma inspiração visual digna de aplauso. Sokúrov se propõe, nada mais nada menos, que filmar a história moderna da Rússia nessa única tomada que percorre os corredores do museu Hermitage em São Petersburgo. Esse passeio, em "tempo real", pretende abarcar 300 anos de história, e evoca personagens como Pedro, o Grande, Catarina, Nicolau e Alexandra, sem esquecer da princesa Anastácia. Há dois "narradores" em cena, testemunhos desse percurso - uma câmera-olho, que a tudo observa, e dialoga com outro personagem, o Europeu. Sim, porque a história da Rússia é também a história do seu diálogo com a Europa, o que a torna, nesse ponto, tão parecida com a do Brasil. Assim como nós, os russos também precisaram definir-se em relação à Europa para entender quem eram. A identidade se jogava assim entre o Eu e o Outro, nessa relação que costuma ser um misto de atração e repulsa. Por exemplo, nos séculos 18 e 19, todo russo culto falava perfeitamente o francês, língua da civilização. O que não o impedia de reivindicar para a mãe Rússia uma grandeza incomparável e única. Sokúrov é feliz ao acompanhar, em meio aos tesouros do Hermitage, essas contradições de um país tão fantástico quanto pouco seguro de si. Essa câmera testemunhal percorre cada corredor do Hermitage com olhar fascinado. Cada porta do prédio descortina uma página da história, e nessa seqüência gloriosa há mesmo espaço para o doloroso cerco da cidade pelos alemães durante a 2.ª Guerra. Esse episódio contabilizou um milhão de pessoas mortas de frio e de fome. Mas nem de longe essa insinuação da Rússia como pátria sofredora é capaz de estragar o banquete de prazeres que acontece no interior aquecido do Hermitage. O frio e a fome ficam do lado de fora e não ofuscam a grandeza do jantar oferecido pelos Romanov - essa Última Ceia que assinala o fim de uma época, de uma dinastia e de uma classe social, a aristocracia. A revolução de outubro é mantida a distância, certamente porque a menção pareceu desnecessária à proposta de restauração de Sokúrov. Um filme não é composto apenas por uma proeza técnica associada ao visual deslumbrante. Há idéias que o cimentam e lhe dão forma. Há um ponto de vista do autor e talvez seja de interesse do espectador detectar aquilo que ele visa e enxerga. À sua maneira, trabalhando com sons e imagens, o cinema é, também, uma atividade intelectual. E Sokúrov o utiliza para defender um ponto de vista que é o da restauração monárquica. Talvez o mundo moderno lhe pareça incerto demais, vulgar e pouco aprazível. Refugia-se numa suposta idade de ouro do país, em outra época. Nessa história, a experiência socialista é tratada como breve parêntese, logo fechado. Assim, Arca Russa é não apenas um exame rigoroso de toda a estratificação cultural de um país vista pelo percurso de um grande museu, mas exercício de nostalgia. O filme é tão forte em seu aspecto visual que tem suscitado comentários superlativos. Adjetivos como "deslumbrante" e "impactante" são usados sem economia. Houve quem comparasse o visual suntuoso com aquele dos filmes de Visconti, esquecendo-se de que o decadentismo do diretor italiano serve a um propósito político. Exemplo: em meio ao fausto do baile de O Leopardo há o contraponto das coxias, da cozinha, dos bastidores, da sala onde ficam os urinóis. O pensamento dialético de Visconti via a frente e o fundo, buscava as contradições. Essas mesmas que Sokúrov evita como se fossem coisa do diabo. Em seu universo idealizado da aristocracia, não há espaço para o reverso. O czar e sua família se bastam e devem bastar a um espectador ideal. Impressionante por alguns aspectos, por esse o filme é pífio.

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