Em Cannes, filme de Polanski relembra o gueto de Varsóvia

Diretor apresenta seu melhor trabalho dos últimos tempos, abordando, pela primeira vez, a experiência trágica que ele próprio viveu quando criança na Polônia

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Por Agencia Estado
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Sempre atraído pelos aspectos mais maléficos da vida social e da mente humana - como provam filmes como Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary e Chinatown, sua obra-prima -, Roman Polanski com certeza desenvolveu essa visão pessimista do homem e do mundo a partir de sua experiência durante a 2.ª Grande Guerra. Ninguém vive impunemente eventos como o que ocorreram no gueto de Varsóvia. Apesar disso, Polanski nunca havia tratado, antes, do assunto. Acaba de fazê-lo com O Pianista. O filme exibido nesta sexta-feira em competição, aqui no Festival de Cannes, é o melhor do diretor em muito tempo, o que, francamente, não quer dizer muita coisa, já que Polanski assinou, nos últimos tempos, obras como Lua de Fel, A Morte e a Donzela e Portal do Inferno. Comparativamente, O Pianista é bom, muito bom, até. Foi bastante aplaudido no final da sessão para a imprensa. Sharon Stone, que integra o júri, mais uma vez levantou-se e aplaudiu com a disposição de uma tiete. O problema é que a dramaturgia de O Pianista é muito tradicional, convencional quase. No festival que celebra o digital e o plano-seqüência, Polanski propõe um filme feito com película e decupagem clássica. O curioso é que, nos créditos finais de O Pianista, há muitos nomes de técnicos e profissionais ligados ao digital. Foram os responsáveis pelos efeitos impressionantes que mostram a destruição de Varsóvia, no fim da guerra. Polanski explica que nunca havia tratado do assunto porque era muito doloroso narrar sua experiência na primeira pessoa. Ele encontrou o material que queria no livro de memórias do pianista Wladislaw Szpilman. "Senti que podia usar a experiência de outro para falar de mim mesmo", explica o diretor. Adrian Brody é o intérprete do papel. Foi o ator de Ken Loach em Pão e Rosas. Brody também explica que sua preparação não foi nada fácil. "Tive de aprender a falar com sotaque e a tocar piano, mas o mais difícil foi aprender a tocar Chopin." Polanski acrescenta que a rodagem não o desgastou emocionalmente, como ele temia que o fizesse. "Há tantos problemas para resolver num set que não sobra tempo para isso." Ele diz que o desgaste veio antes, na fase de preparação, quando ele visitou locais, debruçou-se sobre documentos da época e teve de encarar o seu envolvimento no assunto. "Foram cinco meses de sofrimento", diz. Apesar disso, está contente: "É melhor fazer um filme no qual nos engajamos completamente, um filme que quer dizer alguma coisa importante, do que gastar tempo e energia com um simples divertimento." Carta - O Pianista possui alguns pontos de contato com outro filme da seleção oficial. A Última Carta, de Frederick Wiseman, recria, por meio da carta que uma judia que sabe que vai morrer escreve ao filho, para falar sobre o cotidiano de um povo segregado sob o nazismo. Polanski retoma a mesma idéia. É o aspecto mais interessante de O Pianista. O resto é relativamente mais convencional, culminando no episódio do oficial alemão amante de música que salva a vida de Szpilman pelo simples fato de deixá-lo viver. Esse episódio, por sinal, foi o que mais polêmica despertou em O Pianista, permitindo uma aproximação entre o filme de Polanski e A Trégua, que o italiano Francesco Rosi adaptou do romance de Primo Levi. Podem-se fazer reparos a O Pianista, mas é um bom filme, não uma impostura como Irréversible, do francês (de origem argentina) Gaspar Noë. O escândalo anunciado do 55.º Festival International du Film só escandaliza por ser tão ruim. O que um filme como este faz na seleção de Cannes? É a pergunta que não quer calar. A França é a dona da casa, é natural que queira colocar seus filmes na festa que promove. Deveria selecionar melhor. Os filmes franceses estão entre os piores vistos este ano na Croisette, nem tanto o de Robert Guédiguian, Marie Jo et Ses Deux Amours, mas os de Noë e Olivier Assayas ("O terrível Demonlover"). Neste sábado, último dia da competição, passa o quarto representante da França na disputa pela Palma de Ouro. L´Adversaire tem direção da ex-atriz Nicole Garcia, que já fez O Filho Preferido e Place Vendôme. Por mais fraco que venha a ser, pelo retrospecto de Nicole é difícil acreditar que consiga fazer algo pior que os filmes de Assayas e Noe. Barra-pesada - Noë misturou Amnésia com O Clube da Luta. O filme começa pelo fim, numa boate gay cujos freqüentadores entregam-se a uma orgia sado-masoquista. É barra-pesada, mesmo que o partido visual adotado pelo diretor - movimentação frenética da câmera, luz negra - deixe ver pouca coisa do que ocorre no local. O que se vê, de qualquer maneira, é de estarrecer e termina num assassinato tão brutal que já tem lugar garantido entre as seqüências mais repulsivas do cinema. Entende-se por que o presidente do festival, Gilles Jacob, admite ter desviado várias vezes os olhos da tela. Mais difícil de entender é por que selecionou Irréversible, mas, enfim, os possíveis motivos já foram assinalados antes, nesse texto. Esse início é puro Clube da Luta. Depois, o filme vai recuando, numa narrativa em blocos, como a de Amnésia. O espectador mal consegue respirar do início e vem o estupro da personagem de Monica Bellucci, um plano-seqüência de intermináveis nove minutos que se prolongam como se fossem 90. É difícil imaginar que mesmo um autor como o presidente do júri, David Lynch, conhecido por suas bizarrices, esteja disposto a outorgar a palma a um filme como esse. O favoritrismo dos críticos está dividido entre All or Nothing, de Mike Leigh, e O Homem sem Passado, de Aki Kaurismaki, mas também são considerados fortes candidatos Intervenção Divina, do palestino Elias Suleiman, o filme dos irmãos Dardenne, O Filho, e o documentário de Michael Moore, Bowling for Columbine. Mais pela proeza técnica do que por qualquer outro motivo, muitos críticos incluem Arca Russa, de Alexander Sokurov, no pacote dos premiáveis. Fazem-se apostas também de que, se o palestino for premiado, o israelense Kedma, de Amos Gitai, não ficará fora dos prêmios, o que é injusto com o diretor de Kippur. Seu filme deveria ser premiado por mérito próprio e não para favorecer alguma possível composição política do júri.

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