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Em ‘Benedetta’, Paul Verhoeven faz provocação a elementos religiosos

Cinema transgressor de diretor holandês vai ao norte da Itália no século 17 e conta a história ambígua de uma freira

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

No seu retorno de Cannes, a revista Cahiers du Cinéma estampou na capa os quatro melhores filmes do festival em 2021. Annette, de Leos Carax, Benedetta, de Paul Verhoeven, Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi, e France, de Bruno Dumont. Cahiers ignorou o vencedor da Palma – Titane, de Julia Ducorneau – e também colocou o Verhoeven na sua lista de melhores do ano, na edição de dezembro. Benedetta já passou pela Mostra e pelo Mix Brasil. Estreia nesta quinta, 13, nos cinemas brasileiros. Depois de Elle, a nova provocação do grande diretor holandês chega com tudo para ser, no Brasil, um dos grandes filmes do ano que se inicia.

Imagem de 'Benedetta' Foto:

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Elementos religiosos sempre impregnaram o cinema de Verhoeven. O escritor gay e católico de O Quarto Homem, de 1983 – no começo da carreira do autor, na Holanda –, tem pesadelos que se apropriam de símbolos como crucifixos e terços. No mesmo filme, a aranha, na cena inicial, tece a teia profana que vai colocar tudo em discussão. Em Benedetta, há uma serpente – lembrem-se de Adão e Eva no Paraíso. Em 2011/12, Verhoeven publicou um livro sobre Maria, em que a Virgem da Igreja Católica dá à luz um filho – Jesus – após ser estuprada por um soldado romano. O diretor bem que tentou adaptar seu romance, mas não encontrou clima. Terminou voltando-se para um obscuro episódio da crônica italiana do século 17 que inspirou a escritora Judith C. Brown em Irmã Benedetta, Entre Santa e Lésbica

Na história, Benedetta (Virginie Efira) se considera a escolhida de Cristo – sua noiva – e se torna objeto de adoração na cidadezinha que ainda vive sob preceitos que parecem datar da Idade Média. Benedetta tem visões – e engrossa a voz para torná-la ameaçadora, falando como o próprio Deus, ou como Jesus. Apresenta as feridas da stigmata, mas existem suspeitas de que esteja forjando a própria eleição divina, infligindo-se os ferimentos. Uma conversa da Madre Superiora com o núncio admite a possibilidade, mas predomina a tese de que a Igreja pode beneficiar-se com a fraude, transformando a cidade em centro de devoção de peregrinos, com vantagens econômicas e institucionais. 

LÁGRIMAS DE SANGUE. Há quase 60 anos, ocorria algo semelhante no primeiro e mais controverso episódio de O Cardeal, de Otto Preminger, de 1963. O homem em choque com a instituição – a Igreja. Na cidade interiorana, a estátua da Virgem começa a chorar lágrimas de sangue. Fica provado que são o efeito de um vazamento no teto somado à tinta da pintura da santa. Não tem milagre nenhum, mas quando Tom Tryon, o futuro cardeal, leva o episódio a seu superior ouve que Deus, muitas vezes, se manifesta por vias inesperadas. Não terá sido Ele, o Divino, que provocou o vazamento? Um pouco dessa discussão reaparece no Verhoeven. Irmã Benedetta torna-se uma influência nociva no convento. 

Desafia a superiora, mantém com uma noviça (Bartolomea) uma relação carnal. A Bíblia já guardou revólveres em westerns – e em dramas, como O Mensageiro do Diabo, de Charles Laughton, de 1955 – que marcaram época, mas a Bíblia de Benedetta abriga um crucifixo cuja base foi esculpida para virar um simulacro de genitália masculina que Bartolomea (Daphné Patakia) e ela usam em suas brincadeiras. Sexo – e peste. A ambiguidade moral do longa de Verhoeven manifesta-se na forma como Benedetta invoca a peste contra aqueles que querem mostrar a falsidade de sua vocação, e a peste realmente chega com seu cortejo de vítimas. Pode-se argumentar que chegaria, de qualquer maneira, mas no contexto de fanatismo religioso do filme a palavra de Benedetta é sagrada. 

É o que está em discussão no Verhoeven. Como sempre, o épico e o íntimo são tratados como grande espetáculo, o filme histórico torna-se contemporâneo e a carnalidade é levada ao limite da histeria. Para Cahiers, ao limite sanguinolento da escatologia. O confronto entre o sagrado e o profano, entre o Verbo e a fisicalidade está na essência do cinema transgressor de Verhoeven. E ele transgride dentro da grande indústria. É forte, muito forte.

Composição de história do passado ainda reverbera no nosso presente Luiz Zanin Oricchio

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Paixão mística e furor da carne somam-se em Benedetta. Como de hábito, a linguagem proposta por Paul Verhoeven para contar essa história é marcada pela intensidade e pela e pela proximidade do corpo das personagens. É carnal. Vem dessa opção o potencial de escândalo do filme, desde sua estreia no Festival de Cannes. O impulso místico, associado à sua faceta sexual, encontram-se no corpo da monja Benedetta, magnificamente interpretada por Virginie Evira.

Estamos no norte da Itália, numa Renascença muito ainda com um pé na Idade Média. A menina Benedetta, já com fama de milagreira, é negociada para um convento por seus pais. Trata-se de uma transação comercial, em que as famílias pagam - e caro - para que suas filhas sejam adotadas pela Igreja. A história, tratada com liberdade ficcional por Verhoeven, é a da irmã Benedetta Carlini, que se torna abadessa em Peccia. Tida como santa por uns, devassa e blasfema por outros, enfrenta o tribunal da Santa Inquisição em 1626.

Sob as ordens de uma madre superiora interpretada por Charlotte Rampling, a garota Benedetta cresce. Transforma-se numa jovem bonita e presa de seus devaneios e delírios. A arte de Verhoeven é relacionar o despertar do desejo na relação mística da adoração ao Cristo. Essa combinação explosiva forma-se no corpo da menina feita mulher. A faísca para o incêndio será a chegada de uma jovem ao convento, Bartolomea (Daphne Patakia).

As cenas de amor entre Benedetta e Bartolomea fazem a fama de escândalo desse filme destemido. Mas Verhoeven não se limita à dimensão da alcova. Coloca seu estilo realista e febril a serviço de outros aspectos presentes - a começar pelo jogo de poder presente no microcosmo do convento, réplica de uma sociedade em convulsão. Nesta, a passagem de um cometa pelos céus, prenunciando o Apocalipse, anuncia a eclosão da Peste Negra e a presença do espectro da morte no cotidiano das pessoas.

Medo, superstição, violência, eleição de bodes expiatórios, autoritarismo, oportunismo político - tudo isso faz com que a história antiga da “monja lésbica” salte do passado longínquo, ganhe vida e reverbere em nosso presente. Épocas tão diferentes, mas às vezes tão parecidas.

Cotação: Ótimo

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