Eduardo Coutinho, um cabra marcado pelo diálogo

Autor de obras como ‘Santo Forte’ e ‘Edifício Master’ ganha ocupação em São Paulo

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Costuma-se dizer - com boa dose de razão - que a obra-prima de Eduardo Coutinho (1933-2014) é Cabra Marcado para Morrer. Há, nessa apreciação crítica, a questão estética - a chamada “fatura” da obra, na qual Coutinho se revela um revolucionário inventor de linguagens. Mas para dar musculatura ao julgamento estético, há a questão política, porque Cabra é também síntese profunda de um período histórico, a ditadura (1964-1985), e sua superação. 

Cabra Marcado para Morrer começa como ficção, encenando o assassinato de um líder camponês, José Pedro Teixeira, por jagunços a mando dos latifundiários. No elenco, trabalhadores rurais e dona Elizabeth Teixeira, viúva de José Pedro. Com o golpe de 1964, as filmagens foram interrompidas e os cineastas e “atores”, perseguidos. Tiveram de se esconder para não serem presos. E também foram ocultados os negativos do filme, que por certo seriam destruídos. 

Obra-prima 'Jogo de Cena' foi a terceira e definitiva revolução de Eduardo Coutinho Foto: Daryan Dorneles

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Cabra só é retomado com os ventos da redemocratização do País. Torna-se então documentário, registrando o que fora feito daquelas pessoas que encenavam o crime político no filme interrompido. Em especial, Dona Elizabeth Teixeira, que se escondera sob outro nome e em outra localidade. Com o filme, não é apenas Dona Elizabeth que, de perseguida, retorna como cidadã - símbolo da volta de ideais de justiça social -, mas revive todo um espírito democrático, enterrado sob duas décadas de regime militar. 

A força de Cabra Marcado para Morrer é tamanha que, para muita gente, basta para caracterizar Coutinho como cineasta político. E, no entanto, nada mais redutor do que essa definição - pelo menos no sentido estrito. É verdade que o documentário seguinte, O Fio da Memória, pode caber na caixinha. Feito para celebrar o centenário da Abolição, saiu atrasado, e com outro feitio, em 1991. Ainda assim é um libelo a expor sem disfarces aquilo que o Brasil sempre teima em esconder - o racismo estrutural, subproduto dos séculos de escravidão. 

No entanto, como enquadrar no modelo a obra seguinte, Santo Forte (1999), muitas vezes definido como investigação em torno da religiosidade popular? O doc é isso mesmo, e, ao mesmo tempo, muito mais que isso. 

Ao falar de religião com seus personagens, Coutinho inaugura uma nova modalidade do fazer cinematográfico. Elege a conversa como centro do dispositivo cinematográfico, e o absoluto despojamento de meios como recurso na busca da individualidade do personagem. 

Coutinho reinventa-se e promove sua segunda revolução. Santo Forte parece ser o ponto de chegada de uma longa meditação acerca da sua tarefa de documentarista. Trata-se de buscar o que de irredutivelmente pessoal existe em cada indivíduo. Desse modo, jamais busca assimilá-lo a uma determinada tipologia ou a uma classe social. O novo Coutinho passa a ter horror aos clichês e às generalizações. 

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Assim foi criando obras que delimitavam essa nova era - Babilônia 2000, no convívio com moradores do morro durante o réveillon do milênio. Ou Edifício Master (2002), com os habitantes de um prédio de classe média em Copacabana. 

Talvez Peões (2004) seja exceção nessa fase. Motivado pela chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder, Coutinho queria investigar o ambiente proletário do ABC no qual Lula havia se formado como líder. Ainda assim, visto de perto, o filme se preocupa mais em ressaltar a subjetividade dos companheiros do então presidente do que sua atuação política. Mas é a partir do conjunto dessas subjetividades que se ganha compreensão melhor do significado da chegada de um ex-líder metalúrgico ao Palácio do Planalto. 

O filme seguinte, O Fim e o Princípio (2005), pode ser visto como reflexão sobre a finitude e a morte, meditação sempre filtrada pela subjetividade dos personagens. 

Quando se pensava que Coutinho apenas aprofundaria o trabalho do seu “cinema de conversa”, eis que surge Jogo de Cena (2007). Esta obra-prima subverte os próprios princípios do diretor, talvez apenas para dar-lhes nova envergadura. Temos aqui falas de mulheres que, reinterpretadas por atrizes (famosas ou desconhecidas), ganham outra ressonância. O que é “real”, o que é “ficção”? Tanto faz. Importa que, na narrativa, essas palavras tenham peso próprio, falem tanto das personagens como de nós que as ouvimos e sentimos em nosso íntimo. Jogo de Cena foi a terceira e definitiva revolução de Eduardo Coutinho. 

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