Edgard Navarro filma o "Amarcord" baiano

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Por Agencia Estado
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Edgard Navarro, o mais inquieto e ousado cineasta baiano desde Glauber Rocha (1939-1981), está de volta. Depois de sufocante silêncio, ele chega às telas do Festival do Rio BR na condição de homenageado. Nesta sexta-feira serão exibidos quatro de seus filmes. Em especial, Superoutro, que Caetano Veloso exaltou no samba Cinema Novo (do disco Tropicália 2). Para completar sua volta triunfal, Navarro (foto ao lado) dirigirá - aos 52 anos - seu primeiro longa-metragem: Eu Me Lembro. O filme é uma espécie de Amarcord baiano. Se Fellini desencavou memórias da infância e juventude, por que Navarro não poderia fazer o mesmo? Pois ele fez. Inscreveu o projeto no Edital de Cinema do Governo da Bahia. E ganhou R$1 milhão. Agora, está escalando os atores e enxugando o roteiro. "Vamos realizar ensaios intensos nestes três meses. Em janeiro, filmamos. No final de 2002, lançaremos Eu Me Lembro". Navarro é uma lenda no cinema baiano. Ele nasceu no dia da criança, em 1949, no seio de uma família de classe média. O pai queria que ele estudasse, fosse doutor. Aura de "menino prodígio" o acompanhou desde que se entendeu por gente. Lia Dom Quixote, na adaptação de Monteiro Lobato, e viajava. Escrevia poemas, experimentava canções. Tinha relação "dificílima" com o pai, "um homem rude, que nunca entendeu meus arroubos criativos". Formou-se em Engenharia Civil para ofertar o diploma ("de presente") ao pai. "Aquele diploma" - relembra - "me trouxe um vazio imenso. Ainda tentei aplicar alguma coisa do que aprendi num emprego na Odebrecht. Olhava aquelas fundações sem nenhum interesse. Minha alma estava em outros mundos. Vou enlouquecer, pensei". Experiências com droga, viagens para a Bolívia no trem da morte, estadas no Arembepe. Navarro experimentou de tudo. "Só não pirei de vez" - conta - "porque minha mulher, que substituiu a mãe que eu perdi aos 12 anos, me segurou. Ela era psicóloga e me levou para dentro da obra do Freud". O cinema entrou na vida de Navarro em 1976. Era já homem feito (27 anos). O nome do primeiro super-8 (Alice no País das Mil Novilhas) mostra bem o que passava pela cabeça dele. O segundo S-8 (de nome impublicável) foi feito no ano seguinte. De 78 a 80, mais três filmes na mesma bitola: Exposed, Lin e Katazan e Na Bahia Ninguém Fica em Pé. Numa das edições da Jornada da Bahia, entediou-se (acontecia um daqueles debates politizadíssimos do anos 70) e tirou a roupa no meio da platéia. Causou escândalo. "Eu era muito exibicionista, não nego, mas que o debate estava uma chatice, estava", relembra, passados mais de 20 anos do acontecido. Superoutro - Nos anos 80, Navarro estreou no 35 mm. Dirigiu e protagonizou Porta de Fogo, ficção visionária sobre o guerrilheiro Lamarca na terra do sol. Ganhou o Troféu Candango de melhor curta, no Festival de Brasília/1984. Dois anos depois, refilmou, em 35 mm, o super-8 Lin e Katazan. Mais uma vez foi premiado no festival brasiliense. Em 1989, Navarro realizou o filme mais famoso, maduro e contundente de sua tumultuada trajetória: Superoutro. Ao longo de 45 minutos, em 16mm, imprimiu a história de um louco baiano (o ator Bertrand Duarte), que queria voar como o Super-Homem. Para Navarro, Superoutro é um louco de rua, espécie de Dom Quixote do Terceiro Mundo, que tenta se libertar da miséria através de sua alucinada imaginação. O filme causou imenso impacto no Festival de Gramado. Carlos Reichenbach viu e ficou siderado. Até convidou o superoutro Betrand Duarte para protagonizar Alma Corsária (1994). Na hora da premiação, só deu Navarro (melhor filme e melhor direção). Bertrand ganhou o Kikito de melhor ator. Superoutro foi, então, ampliado para 35 mm. Seus 45 minutos valem mais, muito mais, que muito filme de duas horas feito por aí. Caetano Veloso - que Navarro só viria a conhecer pessoalmente mais tarde - encantou-se de tal forma com o que viu, que colocou Superoutro entre seus filmes de estima. E na melhor companhia: pesos-pesados como Ganga Bruta, Limite, Deus e o Diabo, Os Fuzis, Terra em Transe, Bandido da Luz Vermelha, O Anjo Nasceu, Meteorango, Lira do Delírio e poucos mais. Todos exaltados na letra de Cinema Novo, samba-manifesto que ajudou a levantar o astral do cinema brasileiro nos anos que se seguiram à tragédia collorida. Quem pensou que dali em diante a vida de Navarro seria fácil, enganou-se redondamente. A estante recheada de prêmios só serviu para deixá-lo desesperado. Ao longo dos anos 90, só dirigiu um videoclip (A Voz do Brasil), um documentário em vídeo (Talento Demais) e uma ficção de seis minutos (em vídeo), chamada O Papel das Flores. Talento Demais (que os baianos apelidaram de Tá Lento Demais) é um trabalho de primeira linha. Em 70 minutos, Navarro conta a história do cinema baiano, dos anos pioneiros - passando pelo Ciclo Iglu Filmes (Glauber, Roberto Pires, Rex Schindler) e pela rebeldia de Meteorango Kid, o Herói Intergalático (André Luiz Oliveira) - até chegar à geração superoitista, que ele integrou, e aos curtametragistas (sim, porque a terra de Glauber passou as duas últimas décadas sem realizar um só longa-metragem). Os super-oitos de Navarro e outros realizadores brasileiros estão por recobrar a luz. O pesquisador Rubens Machado prepara, para o Itaú Cultural, grande mostra de produções na bitola. O evento acontecerá em novembro, em grande estilo. Navarro estará presente com vários títulos. Eu me Lembro - O Navarro que vai estrear na ficção de longa-metragem já está com os cabelos brancos. Parece calmo, ao lado da namorada, a atriz Rita Santana (Pixaim). Mas é só aparência. Ninguém conseguiu até agora (e parece que não conseguirá) domar sua rebeldia. De cara, ele avisa que vai fazer o filme "como ele deve ser". Vai "ter viagem de LSD sim", pois "minha geração viajou com drogas leves e pesadas". Por isto, não pretende ocultar este e outros temas polêmicos em troca de censura branda. Neste exato momento, o cineasta está preocupado apenas em condensar o roteiro. "Preciso chegar à síntese ideal. Não posso colocar tudo que gostaria. O filme não teria fim". Navarro tem quatro roteiros, além de Eu Me Lembro, prontos. Um deles, Eu Pecador, vai mexer com muita gente. Em especial, os clérigos. Outro, O Homem Que Dormia, também deve tirar o sono dos contentes. Escreveu, ainda, Conspiração dos Alfaiates, sobre a revolta que sacudiu a Bahia, no século 18, e por encomenda de um amigo, Roma Negra. Na hora de inscrever-se no concurso do Governo baiano, optou por Eu Me Lembro. "O projeto tinha apelo maior que os outros, por tratar-se da memória coletiva de minha geração e por me permitir um retrato da memória física e psicológica de minha cidade (Salvador)". Navarro diz que, "embora narrado em primeira pessoa, o filme não é autobiográfico". Acredita quem quiser. Diz mais: "Eu Me Lembro fará um inventário dos grandes movimentos que mudaram a face do país de meados da década de 50 até a década de 70, ocasionando revolução sem precedentes. Uma revolução que envolveu questões de ordem política, econômica, artística, filosófica, sexual, racial e religiosa". Guiga, o protagonista, aparece, criança, numa Salvador provinciana. No contato com a mãe, Aurora, descobre a sexualidade e seus limites. Com o pai, Guilherme, "temível, austero e puritano exacerbado", viverá muitos conflitos. O garoto cresce movido por culpa católica. Sexo e Deus são tabus. A morte da mãe, quando ele era pré-adolescente, o marcará profundamente. Jovem, nutrirá raiva muda pelo pai. Um dia, este sentimento explodirá em episódio dramático. A literatura e o cinema lhe darão acesso ao mundo dos poetas e visionários. A Ditadura Militar, a universidade, novas experiências de vida, quando "tudo explode colorido no sol dos cinco sentidos", a guerrilha urbana. Tudo se somará. O protagonista será interpretado por duas crianças, um adolescente e, já adulto, por Vladimir Brichta, o apaixonado parceiro da reprimida Genésia (Julia Lemmertz) em Porto dos Milagres, novela da Globo. O elenco terá só nomes baianos. Já estão escalados Regina Dourado, Jackson Costa, Rita Assemany, Nilda Spencer, Wilson Mello, João Miguel, Rita Santana, entre muitos outros, pois não faltarão personagens ao painel geracional de Navarro. A fotografia será de Walter Carvalho, a trilha sonora de Tuzé de Abreu. Caetano Veloso vai compor, especialmente para o filme, a canção-tema. A produção é da Truq, de Moisés Augusto, "o novo Rex Schindler" do cinema baiano.

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