Eça rende filme mexicano sem matizes

O Crime do Padre Amaro, adaptado por Carlos Carrera da obra do romancista português, foi grande sucesso no México e disputa uma das vagas do Oscar

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Por Agencia Estado
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Todo leitor de Eça conhece o título de cor - O Crime do Padre Amaro, um dos romances "escandalosos" do escritor português, que causou muita polêmica em sua época. Natural, porque é a história dos amores de um padre com uma fiel. O que parece estranho é o replay dessa reação em pleno século 21, mas ela ocorreu. E se deu no México, país do diretor Carlos Carrera, que adaptou o filme para o cinema. No tempo de Eça, a condenação da Igreja poderia significar o fim de uma obra. No de Carrera, tem efeito inverso - o fato de a Igreja mexicana ter colocado o filme no índex serviu apenas para alimentar a curiosidade em torno dele e transformá-lo em grande sucesso de bilheteria. Além do êxito de público, o longa foi escolhido pelo México para disputar uma das cinco vagas para concorrer ao Oscar. Na adaptação mexicana, Amaro é vivido por Gael García Bernal, também protagonista do novo filme de Walter Salles, sobre a juventude de Ernesto Guevara. Ele é um "profissional" promissor, protegido do bispo, que planeja mandar o discípulo para estudos, em Roma. Mas antes acha que ele deve fazer um estágio pelo país, de preferência em uma paróquia do interior. Logo Amaro percebe que o pároco, Benito (Sancho Gracia), não é seguidor fanático das regras do celibato eclesiástico. Mantém caso com a dona de um restaurante local, Sanjuanera (Angelica Aragon), e, além disso, completa o orçamento da paróquia com dinheiro "doado" pelo narcotraficante local. Ao aconselhar-se com seu mentor, o bispo (Ernesto Gomez Cruz), Amaro descobre que Benito não é exceção. Pelo contrário, seu comportamento é tido como normal. Já que é assim, Amaro não vê problemas em se envolver com a filha de Sanjuanera, Amelia (Ana Claudia Talancon), mulher de fato difícil de resistir. O que se tem, nessa adaptação moderna de Eça, é mais que a história de um delito eclesiástico. Carrera pinta alguma coisa como o mundo às avessas. Tudo, à volta de Amaro, respira corrupção, em todos os níveis da hierarquia da Igreja e em todas as relações que ela mantém com a sociedade civil. Esta é também viciosa, e seu protótipo são os modernos traficantes de drogas, com suas casas enormes, suas piscinas, seus Rolex de ouro, suas mulheres vistosas. Enfim, com todo o seu dinheiro e conseqüente poder de que desfrutam. Essas ligações perigosas entre Igreja, Estado e criminosos, todos irmanados numa corrupção comum, formam o tecido onde se desenvolve a história de O Crime do Padre Amaro. O tom é o seguinte: o desvio da norma é tanto, e tão generalizado, que já nem mesmo é reconhecido como tal. A honestidade, o respeito pelo próximo, os ideais da fé cristã figuram apenas como atitudes de fachada. O deboche é regra geral e as aparências são mantidas apenas se isso não der muito trabalho. Se não, rouba-se, furta-se e peca-se à vista de todos. Numa cena curiosa, o sacristão aciona um gravador de fita e este toca o dobre dos sinos para os fiéis. Tudo é falso nesse mundo, da virtude dos padres ao som dos sinos. Carrera constrói um único personagem que funciona como exceção à regra. Um dos padres, Natalio, revela-se um abnegado defensor dos camponeses pobres. Por seus ideais aceita tudo, da perda das ordens até a excomunhão. E deverá, no fim, enfrentar até mesmo ameaças de morte. Enfim, um corpo estranho nesse mar de pecado, luxúria e corrupção. A figura de padre Natalio (Damien Alcazar) é uma fresta de luz aberta no universo soturno de Carrera. Esse realismo cru de Carrera chega a incomodar. Se por um lado ele serve ao propósito crítico, por outro peca pela falta de sutileza. Não há nuances, nem meios-tons nesse mundo fechado, nessa pedagogia da desordem imposta ao espectador. Como se o diretor, ao não acreditar em nenhuma dialética, em nenhuma contradição interna, fizesse dos seus personagens figuras chapadas, unidimensionais, às vezes até engraçadas em sua vocação corrupta. É o caso do bispo, vivido pelo grande ator Ernesto Gomez Cruz, o Dom Ru de O Beco dos Milagres. Mas claro, Padre Amaro não tem também a vocação da comédia, ainda que involuntária. E sua idéia de fundo, a de que a Igreja não admite salvação a não ser que se dedique aos desvalidos e suas causas, fica diluída nesse universo de cores muito fortes e nenhum contraste. Serviço - "O Crime do Padre Amaro". Drama. Direção de Carlos Carrera. Méx-Esp-Arg-Fr/2001. Duração 120 minutos. 16 anos.

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