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Drama juvenil de Loach é o melhor de Cannes até agora

Num dia em que Cronenberg e Sokurov decepcionam muito, Sweet Sixteen, do realizador britânico, apresenta um prodigioso trabalho com atores não-profissionais

Por Agencia Estado
Atualização:

Fernando Meirelles trouxe seus garotos para mostrar, com Cidade de Deus, no 55.º Festival International du Film, a cara do Brasil dos excluídos. Ken Loach trouxe os garotos dele para também mostrar, com Sweet Sixteen, a cara da juventude escocesa que tenta, desesperadamente, inserir-se num mundo que a rejeita. Há problemas em Sweet Sixteen, mas é o melhor filme deste festival, até agora. Roman Polanski pode começar a rir. Spider, de David Cronenberg, que era aguardado como uma das sensações do evento - e, desde logo, um filme "palmarizável", dada a afinidade de bizarrices entre os universos do seu autor e o do presidente do júri, David Lynch -, é o sub-Inquilino, que Polanski realizou nos anos 70. Embora chato não seja exatamente um critério para a avaliação de um filme, há que salientar que este é particularmente aborrecido, no limite do desinteressante como sondagem do universo de um psicopata. E há, é claro, Alexander Sokurov. Arca Russa era outro dos filmes mais aguardados do festival. O crítico José Carlos Avellar definiu-o bem: é uma impostura. Você sai da sessão impressionado. Sokurov fez o filme num plano único, em digital. Pode-se imaginar o que foi o planejamento de Arca Russa. A movimentação contínua da câmera e dos atores pelos salões do Museu Hermitage, em São Petersburgo, cria uma coreografia que deve ter sido dificílima de estabelecer. O tour de force técnico é indiscutível. Sokurov teve de desenvolver um chassi de câmera especial para levar a cabo seu projeto. Pode ambicionar algum prêmio técnico, talvez até o de direção, mas só leva a Palma de Ouro se o júri não tiver juízo e for absolutamente obcecado pelas tais novas tecnologias. O problema, como sempre, é: o que Sokurov quer dizer com esse filme? Nem ele deve saber direito. A outra questão: esse plano contínuo era absolutamente necessário ou se trata de um exibicionismo? Há mais de 50 anos, Alfred Hitchcock fez uma experiência de plano contínuo com Festim Diabólico. Por uma rara coincidência, o filme estava passando aqui na televisão, na noite de segunda-feira. Como a bobina de filme não cobria a totalidade de um filme de cento e poucos minutos, Hitchcock teve de recorrer a alguns artifícios. Ele encerrava a duração de cada bobina num escurecimento da tela - a câmera investia contra a roupa de um personagem, por exemplo - e partia dali para a duração da bobina seguinte. Tecnicamente, por gravar em digital, Sokurov não tem essa necessidade. Hitchcock sabia estar brincando. Disse-o, com todas as letras, na entrevista que concedeu a François Truffaut e não adiantava nada o discípulo tentar convencer o mestre de que se tratava de algo criativo e importante. Para Hitchcock, não era. Para Sokurov, com certeza, é, embora, no fundo, talvez não seja. O que é mesmo que ele quer dizer com esse passeio da câmera pela história russa, concentrada no Hermitage, onde um cineasta que a gente nunca vê dialoga com um aristocrata que faz as vezes de meneur du jeu, enquanto desfilam personagem como Pedro, o Grande, e Catarina, a Grande, culminando com o fausto do último baile do império? Toda essa arquitetura dramática converge para a afirmação final do cineasta, o próprio Sokurov, claro, que diz que estamos condenados a viver eternamente. E ele acrescenta: "Adeus, Europa, adeus." É o filme de um nostálgico, que usa a tecnologia mais avançada para viajar ao passado em busca de um fausto que tenta eternizar. Não parecia assim em Mãe e Filho nem em Moloch, sua investigação sobre a proctologia do nazismo, mas será Sokurov um reacionário? É a primeira idéia que se tem diante de Arca Russa. Terá de ser retomada em outubro, quando o cineasta for a São Paulo para participar da 26.ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo. Leon Cakoff, que investiu um pouco de dinheiro na produção do filme, vai promover uma retrospectiva da obra do diretor e ele já concordou em fazer o cartaz do evento. Spider é outra impostura. Cronenberg conta a história de um homem atormentado pelos fantasmas do passado. O personagem Spider, interpretado por Ralph Fiennes, saiu do instituto psiquiátrico, no qual foi internado depois de ver o pai matar sua mãe. Só que as coisas não são o que parecem ser. Como todo herói cronenbergiano, Spider convive mal com seu corpo, mas a ênfase, desta vez, não está aí. A revelação final repõe as coisas em seus devidos lugares sem retirar do filme a aparência de banalidade. No livro no qual ele se baseou, o personagem tem visões de insetos e que tais. Podia-se imaginar que Cronenberg encontraria aí farto material. Ele diz que não se interessou, que não se interessa por isso. Mas e os filmes precedentes? "Sempre foi misunderstood (mal-entendido)", ele disse na coletiva e essa foi sua melhor fala. Teens - Bom mesmo é Sweet Sixteen. O filme de Loach, de certa forma, é o anti-All or Nothing, de Mike Leigh, que também está na competição. Loach realiza outro prodigioso trabalho com atores não-profissionais. O garoto Martin Compston pode até ambicionar o prêmio de melhor ator do festival. Seu personagem chama-se Liam. É um pequeno traficante que, quando o filme termina, está completando 16 anos. Liam faz de tudo para manter a família unida, mas ela se desintegra, ao contrário do que ocorre, de forma bastante arranjada, no fim do filme de Leigh. Os ingleses, de qualquer maneira, estão dando um banho aqui em Cannes. Qualquer um deles poderia levar os prêmios de interpretação masculina e feminina, mas o filme de Loach é melhor, mesmo que seja casto demais. Talvez seja uma reação às comédias de adolescentes produzidas por Hollywood. Os teens desses filmes só pensam na sua primeira noite. Liam tem outras preocupações. É um belo personagem, em um belo filme.

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