Drama entre civilização e barbárie

Em 'Sob o Domínio do Medo', Sam Peckinpah constrói um ambiente sufocante, exigindo o máximo de seus atores

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Num dos extras de Sob o Domínio do Medo (1971), o produtor Daniel Melnick queixa-se da pobre recepção crítica ao filme de Sam Peckinpah. "Muitos falaram mal, menos a Pauline Kael que, no entanto, disse que era o primeiro filme fascista dos anos 1970, o que abateu meu espírito esquerdista", lamenta. Apenas para registro: sobre o filme, entre outras coisas, Kael escreve desse modo na revista New Yorker: "Talvez um dos filmes-chave dos anos 1970. Tem uma visão estreita e pobre. Peckinpah sacrifica a fluência, a espontaneidade e a euforia da amplidão que o tornaram uma lenda - mas não a selvageria." Visto à distância, Sob o Domínio do Medo é mesmo concebido de modo a deixar o espectador intrigado com sua mistura de violência, misoginia e misantropia, fundadas numa descrença básica na capacidade civilizatória do ser humano. Só a violência o redime, mas até certo ponto e quando usada em certas causas. Mesmo assim...É doloroso. Mas isto é Sam Peckinpah. E, deixando-se de lado implicações morais muito estritas, há que se reconhecer que se trata de um filmaço, desses que ficam com a gente mesmo que nos incomodando a consciência. A história é a de um professor de matemática norte-americano David Sunmer (Dustin Hoffmann, novinho) que decide se mudar para o vilarejo inglês onde nasceu e cresceu sua esposa, a provocante Amy (Susan George). Lá, ela reencontra o ex-namorado, que o atual marido tem a péssima ideia de contratar para consertar o telhado da casa que alugaram. Peckinpah não é adepto de sutilezas. Para na primeira cena mostrar a sensualidade provocante de Amy, vê-se que ela não usa sutiã. Para não deixar dúvidas, a câmera dá um primeiro plano em seus seios e nos mamilos que se advinham sob a blusa apertada. A ideia de base do filme é fazer o confronto entre o mundo abstrato de um especialista em alta matemática aplicada à astrofísica e o ambiente tosco e hostil de uma aldeia que não vê com bons olhos visitantes, em especial quando estes vêm de outros países e exercem profissões acima do entendimento médio. E, mais especialmente, quando ousaram tomar como esposa uma das garotas desejadas da tribo. Por isso, Hoffmann passa a ser tratado como um banana, gozado e ironizado onde for. Tenta resolver a situação de maneira racional, mas a razão, ele irá descobrir, é o que menos importa neste caso. Existem no projeto dificuldades apenas contornáveis quando se tem um grande diretor como Peckinpah no comando. Sabe-se que a filmagem foi tumultuada. O diretor criava casos e bebia. Foi ameaçado de perder a direção do longa, que seria entregue a outro cineasta. Nesse caso, não teríamos o mesmo filme, claro. Mesmo causando problemas, o cineasta sabia, como ninguém, imprimir esse tom exasperado, sempre no limite da explosão, sendo essa dimensão do clima uma marca registrada de Peckinpah, tanto quanto suas famosas cenas de violência em câmera lenta. Também nos extras do DVD, a atriz Susan George lembra o desafio que foi para trabalhar com o diretor. Tinha apenas 21 anos e Peckinpah não era homem de ficar explicando o papel a seus atores. Queria que cumprissem o roteiro e ponto final. Forçava seus atores até a exasperação, quando aí então, segundo ele, estariam em ponto de bala para dar tudo o que deles se esperava. Com a garota não foi diferente. Exigiu-se dela e o retorno veio na forma de uma bela interpretação. Mesmo porque Susan tem de participar de uma difícil cena na qual é estuprada pelo ex-namorado e um amigo, enquanto o marido se encontra fora, numa caçada. Peckinpah lhe disse que queria fazer a melhor cena de estupro jamais mostrada numa tela de cinema. Isso incluía alguns momentos polêmicos em que mulher violentada expressava claro prazer com o ato. Como tudo passa pela chave da violência, a sexualidade não poderia tomar outro caminho. A sequência causou vários problemas com a censura, em especial na Grã-Bretanha. Com esses elementos, Peckinpah constrói um ambiente sufocante. De certo modo, o vilarejo é como aqueles embriões de cidades do Velho Oeste nas quais a lei não havia chegado senão de maneira rudimentar e onde a maior parte dos conflitos era resolvida na disputa direta entre as partes rivais. Ou seja, na força. O sentido tribal domina, com sua precária coerência, com a inevitável eleição de bodes expiatórios e o horror a tudo que vem de fora. A sexualidade, inútil dizer, é reprimida e doentia. Um desses bodes expiatórios, um gigante com deficiência mental, será o responsável pela explosão final, quando se suspeita de que teria saído de uma festa da comunidade em companhia de uma garota da região. O pai da menina e amigos vão ao encalço do suposto sequestrador. E este será o conflito decisivo entre Hoffmann e a comunidade quando ele decide abrigar o perseguido em sua casa. E, mais ainda, quando que, em meio àquele caos, resolve que seu lar é inviolável. Na visão de Peckinpah, o confronto entre civilização e barbárie não tem vencedores. A violência é um dado do relacionamento humano, e a sua ação na disputa por espaço de sobrevivência não produz heróis. Apenas sobreviventes, que, desprovidos de moradia, erram sem saber para onde vão, como insinua o diálogo final. Até hoje esse desfecho é muito inspirador pois fala da derrota de todo um projeto civilizatório. SOB O DOMÍNIO DO MEDO Direção: Sam Peckinpah Distribuição: Versátil (118 min., R$ 39,90)

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