Drama de um pai na tela de Moretti

O Quarto do Filho ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e estréia nesta sexta-feira na cidade. Giovanni, é psicanalista e tem de enterrar o filho que morre num acidente no mar

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Por Agencia Estado
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Foi logo depois de Caro Diário. Nanni Moretti queria fazer um filme sobre um tema grave, como ele diz. E começou a tecer a história de um psicanalista. Teria de ser um psicanalista, confrontado com a dor da perda do filho. O tema o obcecava, mas aí o próprio Moretti teve um filho e lhe pareceu absurdo tratar de um tema tão sombrio num momento que, no plano íntimo, exigia outro tipo de reflexão da parte dele, como homem, pai e artista. Moretti fez Aprile, mas nunca desistiu do outro filme. Concretizou-o no ano passado. O Quarto do Filho ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Estréia nesta sexta-feira na cidade. É um belíssimo filme. No recente Sob a Areia, o francês François Ozon falou sobre a impossibilidade do luto. Não deixou de recorrer às chaves da psicanálise. Freud escreveu sobre a necessidade psicológica do luto como forma de encarar e até superar a dor da perda. A protagonista de Sob a Areia, magnificamente interpretada por Charlotte Rampling, não sabe se o marido morreu. Ele some no mar, seu corpo não aparece. Na dúvida - na impossibilidade de realizar o luto -, ela vive um inferno. É fácil ceder à tentação de dizer que Moretti fez um filme sobre o luto impossível para a heroína de Ozon. Há um pai em O Quarto do Filho, chama-se Giovanni, é psicanalista e tem de enterrar o próprio filho, quando o garoto morre num acidente no mar. É o pesadelo de todo pai, de toda mãe. Sobreviver aos filhos é antinatural, mas ocorre de muitas pessoas terem de enfrentar essa experiência terrível. Ocorre em O Quarto do Filho e o luto está lá, embutido na história. Como uma família reage à dor de uma perda tão irreparável? Como consegue permanecer unida após uma fatalidade tão absoluta? O Quarto do Filho é sobre isso, mas é muito mais um filme de investigação psicanalítica sobre o mito do sacrifício. Como escreveu um crítico em Cannes, o quarto do filho não é só o quarto real, mas a gruta-labirinto que Moretti cria para discutir questões profundas que talvez remontem, na história, ao sacrifício bíblico de Isaac por seu pai, Abraão. Cabe, aqui, um parêntese. O Quarto do Filho era considerado um finalista certo às indicações para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Mas a Miramax, que distribui o filme de Moretti nos EUA (e também o de Walter Salles, Abril Despedaçado), preferiu investir no francês O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, de Jean-Pierre Jeunet, que também é dela. Pior para o Oscar. Salles está em ótima companhia entre os rejeitados. O Quarto do Filho já é um dos grandes filmes do ano (com O Senhor dos Anéis e A Cidade Está Tranqüila). Quando estrear, sabe-se lá quando - a exclusão do Oscar atirou o lançamento para a frente -, Abril Despedaçado também entrará para a seleta lista que não inclui Amélie. Moretti costuma ser definido como um autor de comédias. A complexidade da experiência psicológica e emocional que ele propõe em O Quarto do Filho mostra que seu espectro é mais amplo e seu imenso talento não pode mais ser reduzido dessa maneira. Seu filme começa com o que parece o retrato da família feliz. Pai, mãe, um casal de filhos. O garoto, Andrea, é o preferido do pai - é a cabeça dele que Giovanni afaga, mais de uma vez. O garoto comete uma dupla transgressão: um roubo seguido de mentira. Diminui-se aos olhos do pai, que via nele a perfeição. Sua morte terá, para Giovanni, o duplo sentido de um sacrifício e uma punição. O diretor teve tempo de amadurecer o projeto. Trabalhou no roteiro durante três anos. Não há nada na arquitetura dramática de O Quarto do Filho que tenha sido deixado ao acaso. Havia uma frase no diálogo, que Moretti cortou: "O homem pode tentar controlar tudo o que faz, mas não consegue controlar o destino." Ele achou que não ficaria bem na boca do psicanalista. Tudo, no roteiro e na realização de seu filme, obedece a um propósito. As relações familiares, a do psicanalista com seus pacientes. Eles desfilam uma miséria humana e sexual que o diretor olha com compaixão. O adeus de Giovanni ao filho não é menos doloroso do que o abraço que ele dá num paciente atormentado, quando decide abandonar a profissão. Surge a garota que poderia ter sido a namorada de Andrea. Ela aponta o caminho para a família. "Não durma", Giovanni diz à mulher. "Fique acordada, resta con me." O final à beira-mar, é deslumbrante. Você não passará incólume pela rara experiência humana que esse grande filme proporciona. O Quarto do Filho (La Stanza del Figlio). Drama. Direção de Nanni Moretti. Fr-It/2001. Duração: 122 minutos. 14 anos

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