"Domingo Sangrento" recria tragédia irlandesa

À maneira de uma reportagem, Domingo Sangrento recria a manifestação em Dublin que terminou com 13 irlandeses mortos em 1972. Dramático, o filme peca por não explorar aquele contexto político

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Por Agencia Estado
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Em ritmo tenso, câmera na mão à maneira jornalística, Domingo Sangrento, de Paul Greengrass, tem o feitio dos grandes docudramas do cinema. Ou seja, daqueles filmes que recriam, ficcionalmente, acontecimentos verdadeiros, e põem em cena personagens da vida real. No caso, o que está em pauta são os trágicos incidentes de 30 de janeiro de 1972, que transformaram uma marcha de protesto pacífica num massacre no qual morreram 13 pessoas - a maioria das quais adolescentes - e deixaram dezenas de feridos nas ruas de Dublin. Por trás de tudo, o imbróglio separatista e a guerra religiosa na Irlanda, questões cheias de impasses e que têm no IRA seu efeito e seu braço armado. O filme conta com uma atuação frenética do ator James Nesbitt, no papel do político Ivan Cooper, o promotor da marcha pelos direitos civis que termina mal. A manifestação seria um protesto contra a prisão de católicos irlandeses, encarcerados sem julgamento. À maneira de uma reportagem, a câmera acompanha Cooper desde o momento em que este acorda, faz a barba, toma café, despede-se dos pais e sai de casa para ver a quantas anda a organização da passeata. O ponto de vista narrativo fixa-se quase o tempo todo em Cooper. Alterna, às vezes, para o outro lado, para o comando das forças da repressão britânica e para os soldados incumbidos de colocá-la em prática. Mas, claro, o foco está sempre mais voltado para Cooper, para os manifestantes, do que para os repressores. É uma atitude política do diretor. E não fosse a hipertrofia de Cooper, aqui tratado como personagem, poderíamos dizer que Domingo Sangrento teria vocação para o filme coral, com a multidão como protagonista, a exemplo do que acontece em O Encouraçado Potemkim, de Serguei Eisenstein. E, de fato, Greengrass serviu-se de um único (e brilhante) ator profissional, James Nesbitt, distribuindo os outros papéis entre amadores. Todo o resto do elenco é formado por não-profissionais, incluindo os que aparecem como vítimas anônimas de um massacre anunciado. O diretor, em entrevistas, tem sustentado que se inspirou em um clássico do gênero, Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, filme no qual o diretor italiano revive os episódios, também sangrentos, da ocupação colonial da Argélia pela França. Mas a verdade é que Domingo Sangrento e Batalha de Argel se aproximam apenas no fato de se basearem em fatos reais de desfecho trágico. A concepção de ambos é muito diferente. Pontecorvo sabe recriar, além da ação, o ambiente político que dá sentido ao que ocorre. Greengrass, nesse aspecto é deficitário. Não contextualiza e, portanto, deixa de analisar politicamente - aliás, esta parece ser uma característica cada vez mais generalizada dos filmes feitos hoje. A filmagem de Domingo Sangrento é tensa e envolvente mais que a de Batalha em Argel, se levarmos em conta apenas o aspecto formal da coisa. Mas este último mantém uma tensão de fundo que falta ao primeiro, e provém, justamente, do conhecimento e da exposição da dinâmica política envolvida nos fatos. Cada vez mais parece saudável lembrar que os fatos nada são sem sua interpretação. Isso vale para o jornalismo e vale também para o tipo de cinema que se quer filhote tanto do jornalismo como da política. Emoção, sem lucidez, não serve para muita coisa. Grandes filmes se apóiam nessas duas características, nunca em apenas uma delas. Domingo Sangrento (Bloody Sunday) - Drama. Direção de Paul Greeengras. Ing-Irl/2002. Duração: 110 minutos. 14 anos

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