PUBLICIDADE

"Doidas Demais" faz radiografia dos EUA

Apesar da aparente banalidade, filme estrelado por Goldie Hawn e Susan Sarandon revela muito sobre a América dos anos 2000

Por Agencia Estado
Atualização:

José Carlos Avellar disse, certa vez, de Fama, que o filme de Alan Parker era ruim, mas bom de ver. O paradoxo é perfeitamente explicável. Há filmes que podem ser banais, convencionais, mas revelam um mundo de coisas sobre a época em que foram feitos. Não é preciso ir longe. Uma comédia boba como Doce Lar, com Reese Whiperspoon, talvez revele mais sobre os EUA de George W. Bush do que outros filmes que se propõem a abordagens até mesmo sociológicas (e mais diretas) sobre o assunto. Aquela revanche do Sul sobre o Norte é bem o emblema da era bushiana atual. Da mesma forma, Doidas Demais também diz coisas muito interessantes sobre a América dos anos 2000. Em princípio, o filme de Bob Dolman é só uma comédia sobre a necessidade que as pessoas experimentam, em determinados momentos, de retomar o fio das próprias vidas. É um veículo para Goldie Hawn e Susan Sarandon. Fazem as banger sisters do título original. Logo no começo, Goldie está sendo despedida do emprego. É garçonete de um ponto de baladas muito loucas. Pisou mais uma vez na bola, brigando com o chefe e ele a põe para a rua, sem ligar para o fato de que essa mulher é uma verdadeira lenda dos tempos heróicos do rock. Cite um grande roqueiro dos anos 1960 e 70, qualquer um. Goldie foi para a cama com ele ou tem uma história qualquer, íntima e divertida, para contar. Abalada pela decisão do chefe, privada da própria identidade, Goldie vai em busca de Susan Sarandon, sua banger sister naqueles anos loucos que tudo mudaram. Leva um choque. Susan mudou de Estado, de estilo, de vida. Virou uma mulher de respeito, um esteio da comunidade, com direito a árvore com seu nome na praça principal. Susan renega o passado. Casou-se com um homem podre de rico, ficou chique e famosa, veste-se só em tons pastel, cria as duas filhas como o faria a abadessa de um convento preocupada em manter intata a libido das freirinhas. Você pode acreditar no espanto de Susan quando Goldie surge como um fantasma em seu passado. Não que as coisas estejam muito bem para ela. Susan tem dificuldade de admitir que não é muito feliz com o marido, que as duas filhas não são os modelos de virtude que ela imagina. A chegada de Goldie subverte tudo. Goldie é espalhafatosa, vulgar. Termina servindo de agente para a implosão da família - embora, hollywoodianamente, o que o diretor Dolman propõe seja uma implosão da família tradicional para a sua reconstrução em novas bases, mais humanas, mais tolerantes, menos rígidas. Isso é puro Hollywood, o velho direito à segunda chance, um dos temas mais freqüentes (com a volta ao lar) do cinema americano. Mas há aspectos que redimem o filme e o tornam verdadeiramente interessante. Afinal, o que está em discussão é uma época mítica - os revolucionários anos 1960. De novo é o revanche do Sul, pois Susan casou-se com um sujeito que fez sua fortuna em Dallas, no Texas. Esse Sul profundo tem todo interesse em enterrar a herança da década que mudou tudo e cujo espírito o diretor quer reencontrar. Para completar o quadro, o roteiro, do próprio Dolman, cria o personagem de Geoffrey Rush. Ele se chama Harry, saiu de sua cidade para ser roteirista em Hollywood e agora volta disposto a matar o próprio pai, a quem culpa por seu fracasso como homem e como artista. Há um mito do pai, da autoridade que precisa ser superada. Só em paz consigo mesma uma pessoa consegue estar em paz com o mundo. Dentro da aparente banalidade de um filme convencional, há aqui um material interessante, ao qual vale prestar atenção. As atrizes estão ótimas e vale a pena ver Goldie e Susan de pileque, quando a segunda revira o baú de suas lembranças e tira dele as fotos que as banger sisters, duas groupies de carteirinha, fizeram da genitália de todos aqueles homens que conheceram biblicamente, nas noites quentes do rock. Elas tentam identificar cada um deles (e o nome está escrito atrás). Pode ser vulgar, e é, mas há nessa vulgaridade uma disposição de comentar o mundo atual em relação aos anos 1960. Dolman mata a charada ao dizer de onde veio a inspiração para o seu filme. Da letra de uma música menos conhecida do mítico Jim Morrison. Ela se chama Stoned Immaculte e diz para o seguinte: "Numa noite, indo para o píer, me deparei com duas garotas. A loira se chamava liberdade e a morena, empresa." É o dilema que ele quis expressar em Doidas Demais, falando sobre as pessoas que um dia quiseram mudar o mundo e terminaram cooptadas pelo capital. Doidas Demais ("The Banger Sisters"). Comédia. Direção de Bob Dolman. EUA/2002. Duração: 97 minutos. 14 anos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.