Documentário vive boom de escala mundial

Contraponto do cinema documental se faz com realidade falseada da TV

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Por Agencia Estado
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Em interessante artigo no Libération, Gérard Lefort constata a força renovada do documentário. Cita dados franceses. Être et Avoir, de Nicolas Philibert, teve público de 1,5 milhão, Jogando Boliche por Columbine, de Michael Moore, 795 mil, e Glaneur et la Glaneuse, de Agnès Varda, 124 mil. Dos três, apenas o primeiro ainda não foi exibido no Brasil. Lefort entende que esses sucessos relativos se devam a expectativas latentes no público, que teriam sido despertadas pelos filmes. Être et Avoir (Ser e Ter, ou Existir e Possuir) joga obviamente com o desejo de contestação dos indivíduos face à sociedade de consumo. Columbine, denúncia da obsessão americana pelas armas, fala forte quando a iminência da guerra torna obrigatória a discussão da força bruta e da óbvia impotência de instâncias mediadoras como a ONU. Glaneurs é mais sutil. Focaliza catadores de materiais e objetos usados, sendo que a própria cineasta se coloca no papel de uma "catadora de imagens". Seria, segundo o autor, expressão da má consciência da burguesia boêmia, nostálgica de uma vida mais singela. O articulista repara em outro detalhe, também óbvio: a grande parte dos documentários se encontra na televisão, e não nos cinemas. E, na TV, o protótipo do documentário, ou seja, de aproximação com o real, seriam aqueles programas não por acaso chamados reality shows. Na França, o principal deles chama-se Loft Story, equivalente ao Big Brother local. O esquema é o mesmo e não merece ser descrito aqui. Interessa o que o articulista aponta, ou seja, que esse tipo de proposta, sob a aparência de verdade, é a realidade falseada ao máximo. Os reality show têm muito mais a ver com o show do que com o real, como sabe qualquer pessoa de bom senso. Além disso, Lefort nota que, em alguns casos, os documentaristas sentem necessidade de documentar-se a si mesmos. Aparecem nos filmes, o que também não é novidade, mas com freqüência que parece sintomática de alguma necessidade. Como se para distinguir seus filmes daquela "realidade" falsa da televisão, os cineastas os carimbassem com um selo de autenticidade, da mesma forma como se faz com os bons vinhos. Essa "origem controlada" seria marcada pela presença física do próprio cineasta. Em Glaneur, Agnès Varda filma a própria mão envelhecida. Filma a si mesma, ou melhor, uma parte do seu corpo, para falar de envelhecimento, da morte. Essas aparições não se dão ao acaso: "O documentarista que se documenta é um fantasma de si mesmo, mistério encarnado (pessoa ou personagem) que nos encoraja a nos tornarmos aquilo que já somos - autores complexos de nossas próprias vidas." Portanto, falando deles, os documentaristas falam de outra coisa, e, falando de outra coisa, falam deles mesmos. Esse ir e vir é a marca do documentarismo autoral, do tipo que é feito, no Brasil, por um Eduardo Coutinho, por exemplo. No caso de Columbine, a presença do diretor é ostensiva. Moore aparece em cena quase o tempo todo, e não apenas conduzindo a narrativa em off. É ele quem entra na casa de Charlton Heston e deixa em péssima situação o ator veterano, presidente da Associação Americana do Rifle. Moore entrevista o roqueiro Marilyn Manson e vai à cidade de Littletown, no Colorado, onde existe o colégio Columbine, que dá nome ao filme. Foi lá que dois estudantes pegaram as armas dos pais e mataram 14 colegas e um professor no refeitório. A emergência dessas descargas de violência, com armas na mão, preocupa os setores liberais da sociedade americana. Moore age como porta-voz dessa minoria. Não busca uma suposta neutralidade e coloca marca autoral em sua tomada de posição. Nada que a TV ousasse mostrar.

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