Documentário domina o dia em Cannes

Até membros do júri deixaram de lado a isenção e manifestaram entusiasmo pelo filme de Michael Moore sobre a proliferação de armas na sociedade americana

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Por Agencia Estado
Atualização:

David Lynch, presidente do júri, aplaudiu de pé. Sharon Stone fez o V da vitória e foi abraçar o diretor Michael Moore na saída do palais. A pergunta que se faz desde sexta-feira, aqui no 55.º Festival Internacional do Filme, é: depois de 46 anos, outro documentário subirá ao pódio da mais importante mostra de cinema do mundo? Foi em 1956 que Jacques Yves Cousteau e Louis Malle receberam o Grand Prix por O Mundo do Silêncio, seu belo documentário sobre o fundo do mar. A volta do documentário à mostra competitiva de Cannes, após tanto tempo, celebra a força de um gênero cujo prestígio não pára de crescer. E, com o filme de Moore, o que volta à Croisette, em alto estilo, é a política. Chama-se Bowling for Columbine e baseia-se num massacre ocorrido no Colorado, para retratar o culto da violência que está na base da sociedade dos EUA. Moore investe contra a mídia, que demoniza negros e hispânicos, e toma como principais alvos a NRA e o presidente George W. Bush. A NRA é a Associação Nacional do Rifle nos EUA. Seu garoto-propaganda é Charlton Heston, o ator que entrou para a história com personagens épicos como Moisés, Ben-Hur e El Cid. O que se assistiu em Cannes, no Palais du Festival, foi a destruição do mito Charlton Heston. No filme, o próprio Michael Moore invade a casa do astro para perguntar-lhe por que, logo após o assassinato de uma menina de 6 anos por um colega da mesma idade, foi à cidade dela para promover um meeting em defesa do porte de armas. Heston foge da câmera e o vemos, pateticamente, esconder-se dentro de casa, um pobre velho que caminha com dificuldade por causa da artrite. Moore coroa a cena colocando, na porta, o retrato da menina morta de maneira tão brutal. Poucas vezes se viu documentário tão subjetivo - o diretor está presente o tempo todo, conduzindo sua enquete - e, ao mesmpo tempo, tão objetivo. Moore discute o estado de paranóia em que o povo norte-americano é induzido a viver - pela mídia, pelos políticos, pelo governo. É um país que só consegue resolver seus conflitos pela violência. Moore é documentarista, mas agora virou uma celebridade pelo livro Stupid White Man, um ataque feroz ao presidente George W. Bush que o levou a ser declarado inimigo da América pelo secretário de Estado. Tão grande foi o impacto produzido por Bowling for Columbine que diminui consideravelmente as chances de tudo o mais que foi visto no mesmo dia. All or Nothing mostra que Mike Leigh, o diretor de Segredos e Mentiras, atingiu a perfeição no seu método de trabalho com os atores. O filme é espetacularmente interpretado, mas seu retrato de uma Inglaterra afundada na degradação social e humana estrutura-se num miserabilismo episódico um tanto insistente, ainda mais que toda a construção dramática encaminha-se para um desfecho que não deixa de ser arranjado para celebrar a família. Para os brasileiros, a grande curiosidade foi a primeira exibição pública, para a imprensa, do filme que Fernando Meirelles adaptou do livro de Paulo Lins, Cidade de Deus. O filme é uma espécie de reportagem, violento e impactante. Meirelles vai desagradar a meio mundo no Brasil. O centro e a direita não vão perdoá-lo por sua visão do País dividido pela exclusão social. A esquerda talvez o acuse de recorrer a uma linguagem que usa a publicidade para passar sua reflexão sobre o Brasil contemporâneo. Meirelles já havia dito à Agência Estado que, para ele, essa é uma questão falsa. O que lhe interessa é ser eficiente e isso ele consegue ser. O que não cabe dúvida, porém, é que o trabalho de Kátia Lund com os atores - os "meninos" que, segundo o diretor, colocam a cara do Brasil na tela - é prodigioso. Meirelles reconheceu isso ao dar a Kátia o crédito de co-direção, mesmo que ela não tenha participado em nada da parte técnica nem da montagem do filme.

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