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Documentário de Leon Hirszman joga luz em filme sobre loucura

'Imagens do Inconsciente' reúne em dois DVDs a obra hoje referencial de Nise da Silveira com doentes mentais

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Com Nise, de Roberto Berliner, em cartaz, é tempo para redescobrir o extraordinário trabalho da Dra. Nise da Silveira com os internos no Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro. Para tanto, não há melhor complemento ao filme de Berliner que a caixa com dois DVDs de Imagens do Inconsciente, de Leon Hirszman, lançado pelo Instituto Moreira Salles.

O filme é composto de três episódios, que acompanham as histórias de três internos do Hospital Psiquiátrico Pedro II: Fernando Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis. Eles chegaram à instituição diagnosticados como portadores de graves distúrbios mentais. Salvou-os das práticas psiquiátricas ortodoxas a presença providencial de Nise da Silveira (1905-1999), que havia instalado no hospital um serviço de terapia ocupacional. Nele, os internos desenvolviam, entre outras atividades, trabalhos artísticos que foram apreciados por críticos do porte de um Mário Pedrosa. 

O cineasta brasileiro Leon Hirszman, diretor do documentário 'Imagens do Inconsciente', sobre Nise da Silveira Foto: Reprodução

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Essas obras são apresentadas de maneira sequencial, com texto escrito pela própria Dra. Nise e narrados por Ferreira Gullar e Vanda Lacerda. Além de Fernando Diniz – Em Busca do Espaço Cotidiano (80’), Adelina Gomes – No Reino das Mães (55’) e Carlos Pertuis – A Barca do Sol (70’), há um epílogo, a cereja do bolo, intitulado de Posfácio. Trata-se de uma longa – e rara – entrevista com a Dra. Nise, realizada por Hirszman em 1986.

O início do episódio de Fernando Diniz tem caráter didático, no bom sentido. Vemos imagens de doentes dormindo ou largados pelo chão. Ou andando como zumbis pelo pátio. São “tratados” pelos métodos psiquiátricos tradicionais – eletrochoque, lobotomia, remédios. A terapia ocupacional os livra dessa inércia cotidiana. Consiste em trabalhos de marcenaria, encadernação, etc. E também de tarefas artísticas, como pintura, modelagem e escultura. Nestas, eles conseguem expressar com maior vigor o tumulto de suas vidas internas.

Por isso, as obras devem ser vistas em ordem cronológica, pois dão ideia do processo de tentativa de reorganização tanto do caos do mundo externo quanto da desordem do mundo interno. São itinerários de reestruturação. Por isso, a sequência de obras é importante para o estudo desses casos. Mas, além disso, o próprio fazer da obra funciona como agente terapêutico. E, pelo menos em certos casos, essas pinturas se revestem de valor estético, como mostram algumas telas de Diniz, Adelina e Pertuis.

Quanto à entrevista, trata-se de joia rara. Dona de pensamento complexo e vivaz, Nise mescla os ensinamentos de Carl Gustav Jung com sua prática direta com os internos. Não esquece tampouco a dimensão política, ela que foi encarcerada durante o Estado Novo, acusada de comunista. Nise passou três anos no Partido Comunista, mas acabou expulsa sob acusação de ser trotskista, o que fala em seu favor, embora não o fosse. Diz-se movida pela busca do conhecimento e pela “curiosidade do abismo”, que encontra nas formas da loucura. Num momento saboroso de sua fala, lembra de como foi difícil convencer os outros médicos do valor de sua terapia. Os mais velhos não queriam saber de nada que os tirasse da rotina. E os mais jovens, para sua surpresa, não se envolviam, por puro preconceito elitista contra o trabalho manual que teriam de desenvolver com os enfermos. “Para eles, trabalho é só mental”, ri a doutora. Como se sabe, trabalho de qualquer espécie é coisa para inferiores, na melhor tradição ibérica e aristocrática. 

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