Diretora Naomi Kawase fala sobre o filme 'O Segredo das Águas'

Cineasta se diz decepcionada por não vencer a Palma de Ouro

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Aos 45 anos - nasceu em Nara, em 30 de maio de 1969 -, a japonesa Naomi Kawase tem feito carreira em grandes festivais com filmes que não apenas desafiam cânones narrativos como surpreendem pelo auto teor de exposição pessoal. Ela já fez um filme sobre o próprio parto e, tendo sido uma criança solitária, numa família adotiva, filmou a morte de sua avó. 

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Essa mesma avó morava na ilha Amami-Oshima, que Naomi descobriu em 2008, quando realizava pesquisas sobre sua família biológica. A avó era uma espécie de xamã e a ilha, batida por ventos e ondas muito fortes, abriga tradições seculares. Tudo isso a diretora trouxe para O Segredo das Águas, seu grande filme que acaba de estrear. 

No ano passado, Naomi desembarcou em Cannes como favorita à Palma de Ouro. Chegou a admitir que merecia o prêmio e que seu filme era uma obra-prima. Isso pode ter irritado a presidente do júri, a australiana Jane Campion, única mulher a receber a Palma, em toda a história do maior festival do mundo - por O Piano, em 1993. Naomi não ganhou nada. Em Cannes, ela já havia sido entrevistada pelo repórter. Por e-mail, respondeu a perguntas adicionais.

 

Em encontros reservados no Brasil, Jia Zhang-ke, que integrava o júri de Cannes, disse que se sentiu muito solitário defendendo seu filme, que era o favorito dele à Palma. Você ficou desapontada por não ganhar?

Lembro-me de você e do seu entusiasmo pelo meu filme em Cannes, e por isso fica até mais fácil responder. Sim, com certeza foi decepcionante não ganhar nada. Como os filmes são avaliados em festivais depende muito da composição do júri. O que foi mais decepcionante foi saber que havia integrantes da minha equipe e parte da audiência que acreditavam na possibilidade de vitória e esperavam pelos prêmios. Isso foi o mais triste, o fato de eu não poder dar-lhes os prêmios que gostariam de receber. Mas a verdade é que filmes não são feitos para receber prêmios. Pelo menos não para mim. O que me leva a filmar é o desejo sincero de capturar algo que seja verdadeiro em mim e nos outros, e fazer com que seja compartilhado pelo público. Não falo nas pessoas próximas. Falo em audiências globais e até futuras. Um filme pode fazer esse movimento, ter essa trajetória. É o que sempre penso, quando inicio um projeto. É o papel que me atribuo, como autora de cinema. O que me move é poder dar às pessoas esperança de viver.

Há uma questão em seu filme, e é o assassinato. Ele começa com a descoberta de um cadáver. Mais importante que descobrir as motivações do crime, é a sua dupla de protagonistas jovens, o garoto e a garota. Como você chegou a essa ideia? Ou como criou a estrutura narrativa?

As pessoas no passado deixaram suas mensagens como nós as deixamos para quem vier depois de nós, para que não repitamos os mesmos erros. Isso tem ocorrido na arte ao longo dos séculos. O problema é que nós, humanos, seguimos repetindo os mesmos erros. É o mesmo mais fundo desejo, que eu quis passar para as futuras gerações. Essas duas pessoas representam para mim o novo povo. Estão em meio ao processo de deixar de ser crianças para se tornar adultos. Estão aprendendo a aceitar os outros, a não se deixar dominar pela amargura no que se refere à memória das próprias experiências. Estão descobrindo que esse mundo, apesar das dificuldades, é bonito. Quando os humanos chegam a esse ponto de discernimento, creio que estamos dando um passo para nos elevarmos e atingir um mundo melhor, que ainda não experimentamos. Eu me pergunto se não estamos sendo testados face a um tema visceral. Estamos na encruzilhada. Que caminho vamos tomar como humanos? Que caminhos vão nos afirmar, como tal?

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Depois da densa vegetação de A Floresta dos Lamentos, você filma o mar. Por que a natureza é tão forte no filme?

Os habitantes de Amami-Oshima olham para o mar como se ele fosse um deus. Dizem que, depois do mar, há um lugar que chamam de Neriyakanaya, e isso quer dizer - fonte de abundância. É para lá que a nossa alma vai, quando morremos. Os que partem desfrutam de belíssimos momentos, pacificados internamente pelas canções que vêm da ilha. Há alguns anos descobri que meus ancestrais viviam na ilha. Em busca de minha mãe biológica, descobri minha avó. E ela me ensinou que o sangue que corre nas minhas veias veio dessa ilha. Fomos todas para um spa, e ao ver as três mulheres mais importantes da minha vida, vivi uma sensação que desconhecia. Tudo estava conectado. Alguma coisa que era transmitida de mãe para filha, desde tempos imemoriais. Eu mesma estava grávida. Gerava uma nova vida em meu ventre, e me dei conta de que ela também carregaria minha herança. Em 2008, ao visitar a ilha, estudei-a por inteiro e visitei a vila dos meus ancestrais. Deixei lá um pedaço do meu coração. O outro eu coloquei no filme.

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