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Diretor propõe mergulho na Rússia profunda em Veneza

'The Postman's White Nights', de Andrei Konchalovksi, é inclassificável, e pode até levar o Leão; já 'Good Kill', de Andrew Niccol é muito ruim

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

VENEZA - Quando já não se esperava qualquer novidade no Festival de Veneza 2014, surgiu o chamado filme inclassificável. No título inglês The Postman's White Nights, Andrei Konchalovksi propõe um inusitado e comovente mergulho na Rússia profunda. Vai a um vilarejo perdido no norte do país, cujos habitantes precisam enfrentar a travessia de um lago para ir à cidade. Vivem num tempo quase morto, separado da civilização, mas que tem, em suas cercanias, uma importante base militar de lançamento de foguetes.

Em entrevista, Konchalovski foi discreto sobre a realização do projeto, dizendo, no entanto, que os personagens eram todos não atores, com exceção de uma atriz profissional, que integra o elenco. "Eles se limitaram a viver seu cotidiano diante das câmeras e a história foi sendo escrita através desse contato entre eles e nós", disse. O trabalho, artesanal, demorou um ano. "E foi graças às novas tecnologias, que baratearam os custos de produção e, desse modo, me fizeram independente de grandes somas de dinheiro", contou o veterano cineasta, nascido em 1937. "Na verdade, nunca fui tão livre como agora", disse. Livre, inclusive, de expectativas. "Quando eu era jovem, um prêmio podia decidir a continuidade ou não da minha carreira", diz. "Agora, essa carreira já se fez e posso dispensar esse estresse de esperar por um reconhecimento. Ganhar um festival é tão aleatório quanto ganhar na roleta de um cassino".

Diretor Andrei Konchalovksi em Veneza Foto: REUTERS/Tony Gentile

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Tão livre se sente Konchalovski que pôde se dar ao luxo de trabalhar com um fiapo de história. Nesse vilarejo, o carteiro é quase um elo entre o mundo perdido e a civilização. Ele é um ex-alcoólatra, que consegue se manter longe da vodca por dois anos. Está apaixonado por uma mulher que sonha escapar daquela vida, em companhia do filho pequeno. Há incidentes mínimos que costuram a trama, como o furto do motor do barco que impede o carteiro de entregar a correspondência e o obriga a ir à cidade para dar parte do ocorrido. Existe o tradicional bêbado da cidade, os aposentados que se queixam de tudo e falam dos bons tempos, as comadres, as festinhas ao som de harmônica com a presença de quatro gatos pingados. Uma vidinha, em suma, porém exposta com tamanha graça que nos prende o olhar à tela.

Instado a falar de suas influências, Konchalovski cita Flaherty (o grande documentarista de Nanouk, o Esquimó), mas também os mestres do neorrealismo, Roberto Rossellini, Vittorio De Sica, Luchino Visconti e outros. Mas, disse, sua grande ambição é fazer filmes para adultos. "Um público que não tem mais vez no cinema, porque hoje o cinema é destinado ao público adolescente ou infantil". Quem discute isso?

No final da sessão, essa obra limite entre a ficção e o documentário, foi muito aplaudida. Houve quem a considerasse candidata ao Leão de Ouro. Não é julgamento despropositado. Pode ganhar e o prêmio maior lhe cairia bem.

Se terminasse com The Postman's White Nights, o Festival de Veneza fecharia com chave de ouro. Infelizmente, reservou-se para o último dia de competição o inominável Good Kill, de Andrew Niccol (o mesmo de Gattaca). Após a sessão, alguns italianos gritaram o clássico "Vergonha!", reservado exclusivamente aos concorrentes muito, mas muito ruins. Foi mesmo uma vergonha incluir um filme destes na competição de um dos três principais festivais de cinema do mundo. Provavelmente deixaram-no para o final para que não houvesse tempo para a repercussão negativa. Em seus dois últimos dias, o festival se esvazia, muita gente vai a Toronto, ou volta para suas cidades italianas e segue a premiação pela TV.

Ethan Hawke, January Jones, Zoe Kravitz e o diretor Andrew Niccol, em Veneza Foto: AP Photo/Andrew Medichini

Em Good Kill, Ethan Hawke é um piloto de combate agora incumbido de controlar drones, aviões de guerra dirigidos à distância. Em sua sala em Nevada, ele e equipe, com joystick na mão produzem ataques mortais no Afeganistão e Iêmem, em busca de terroristas da Al-Qaeda. Quando por acidente, mata duas crianças, Tommy (Hawke) começa a ter problemas de consciência. Começa a beber durante o expediente e a maltratar a esposa (a bonitona January Jones). Além de preguiçoso em sua feitura, Good Kill (expressão usada quando um alvo é destruído) parece mal-intencionado. Dá a entender que a maior vítima da guerra dos drones é a boa saúde mental dos pilotos americanos. Quanto cinismo...

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Com esse desfecho melancólico, terminou a mostra competitiva de Veneza-2014. Não devemos nos deixar levar por essa última impressão, muito ruim, na verdade. Visto em seu conjunto, o festival teve bom nível e os jurados dispõem de elenco diversificado de filmes para produzir uma votação equilibrada. Até ontem o documentário The Look of Silence, sobre os crimes da ditadura de Suharto, era o favorito, pelo menos na votação dos críticos. Agora, Konchalovski entrou na disputa. Mas há outros candidatos, até mesmo o italiano Almas Negras, uma visão diferente sobre a máfia, com graves implicações políticas. O insólito sueco A Pigeon Sat on a Branch também está bem cotado. Cabe agora a palavra ao júri que, pela primeira vez está sendo presidido por um músico, Alexandre Desplat. Veremos que resultados produz esta invenção do diretor do Festival de Veneza, Alberto Barbera. Os prêmios serão anunciados na noite local deste sábado, 6, em cerimônia na Sala Grande, no Lido de Veneza.

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