Diretor indiano Chaitanya Tamhane expõe a vida secreta de uma sociedade milenar

Os longas ‘Tribunal’ e ‘O Discípulo’, exibidos na Netflix, são uma intensa imersão na Índia

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Por Luiz Zanin Oricchio
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Chaitanya Tamhane: guarde esse nome. Trata-se de um ainda jovem diretor, nascido em 1987 na Índia. Seus dois primeiros filmes encontram-se disponíveis em streaming (Netflix) e dão ideia de quanto um talento de cinematografia não hegemônica custa a chegar por aqui. Tribunal (2016) e O Discípulo (2021) são originais e intensos. Mergulham na realidade indiana de maneira inesperada. São específicos de uma cultura e, ao mesmo tempo, universais. Falam a todos nós. 

'O Discípulo', de Chaitanya Tamhane, tem música como uma elevação espiritual. Foto: Zoo Entertainment

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Tribunal não esconde nada, a partir do seu título. De fato, temos aqui um filme de julgamento. Como tantos outros? Nada disso. A própria acusação já é de molde a nos surpreender. Um homem, limpador de bueiros, foi encontrado morto em seu local de trabalho. Não há sinais de crime ou de morte voluntária. Não deixou qualquer mensagem e seu corpo não apresenta ferimentos. 

No entanto, um músico de 65 anos é acusado de tê-lo incintado ao suicídio. O cantor, conhecido por suas músicas de protesto, havia se apresentado algum tempo antes. Uma das letras do seu repertório diz que os limpadores de bueiro de Bombaim, onde a história se passa, deveriam se matar inalando o gás dos esgotos. Isso, claro, para denunciar a insalubridade desse tipo de trabalho. 

Como nos julgamentos que estamos acostumados a ver, há o réu, um juiz, um promotor (promotora, no caso), um advogado de defesa e uma audiência. É uma peça de teatro, na qual os participantes se apresentam para, no melhor dos casos, chegar à verdade e a uma sentença. Isso quando não se trata de um julgamento de cartas marcadas, como tantos por aí. 

Este não é um deles. É uma obra aberta. Não tem um script ensaiado a priori por seus participantes. E, por seu andamento, a própria sociedade acaba sentando no banco dos réus. Como, por exemplo, durante o depoimento da viúva. Em sua simplicidade, ela expõe a insalubridade do trabalho do marido como provável causa de sua morte.

O diretor Chaitanya Tamhane e o ator de 'O Discípulo', Aditya Modak Nardi. Foto: REUTERS/Yara Nardi

O filme não se limita ao ambiente do tribunal, mas expande-se fora dele, seguindo de perto seus protagonistas e registrando-os em sua intimidade. Juiz, promotora e advogado são vistos em suas prosaicas vidas civis, despidos da aura de demiurgos quando, no recinto do tribunal, encarnam a Justiça e decidem pela culpa ou inocência de uma pessoa. 

O resultado é um retrato bastante forte da sociedade indiana, dando a Tribunal um ar de documentário, porém expresso em linguagem de ficção. 

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Em O Discípulo, vencedor do prêmio da crítica (Fipresci) e melhor roteiro no Festival de Veneza de 2020, temos mais uma vez a música ocupando lugar de destaque no trabalho de Chaitanya. Aqui, esse papel é central, mostrando um processo de imersão na trajetória de um artista em formação. O jovem Sharad Nerulkar tenta se aperfeiçoar na música clássica, o milenar Raga indiano, que tem no canto não apenas uma técnica, mas uma arte de elevação espiritual. 

O rapaz é filho de um pai também cantor que teve aulas com uma professora mítica. Esta não deixou nada gravado, apenas uma memória. Uma espécie de Sócrates de sari, que legou somente sabedoria oral e a lembrança de uma música inigualável. Sharad persegue esse rastro de memória porque, para ele, é uma imagem da perfeição. Ele também tem um professor, ex-discípulo dessa entidade feminina. 

Estamos, portanto, no universo da música, da espiritualidade, da busca pela perfeição que acompanha todo artista. Essa trajetória é construída com idas e vindas no tempo. O artista ora é visto em seu presente, ora em seu passado, na relação com o pai que lhe transmite a vocação. E o acompanhamos nesta aventura artística e espiritual, verdadeiro mergulho num ambiente em que a música é também busca de ascese. 

São, portanto, dois filmes de temáticas bem distintas, mas que apresentam um traço estilístico comum: o trabalho (paciente) com o tempo. 

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Tanto ao drama de tribunal quanto à aventura musical, Chaitanya imprime ritmo próprio. Não propriamente lento - não há qualquer monotonia na maneira como expõe e arranja suas imagens e sons. Mas é, por assim dizer, um tempo outro, no qual as falas do tribunal são seguidas com atenção e os cantos, ouvidos por completo. Talvez, para uma sensibilidade ocidental mais apressada, bastassem trechos para estabelecer o ambiente dramático. Para o indiano, é preciso expor por completo. Porque não se trata apenas de informar, mas de convidar o espectador a imergir numa cultura que não necessariamente é a sua. 

De toda forma, os filmes não se limitam a experiências sensoriais ou mesmo espirituais. Têm essas dimensões, sem dúvida. Mas também se articulam em histórias intrigantes e interessantes, capazes de seduzirem qualquer um disposto a entrar em contato com cinemas de outras geografias e outras experiências. 

Em Tribunal, o pequeno caso envolvendo o cantor transforma-se num affair político, onde condições terríveis de trabalho e limites à liberdade de expressão se colocam em pauta. Em O Discípulo, o enredo ganha ares de investigação em torno de algo perdido, com a mestra misteriosa do passado simbolizando o impossível resgate de uma tradição ameaçada e talvez condenada. Nos dois filmes pulsa a vida secreta de uma civilização milenar. 

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