Diretor do filme ‘Vidas Partidas’ diz que não conhece história do tipo que não seja a dois

Marcos Schechtman comanda filme estrelado por Domingos Montagner, o Santo da novela Velho Chico

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Sábado de tarde no Espaço Itaú do Frei Caneca – a sala estava quase cheia para ver Vidas Partidas. Pode ser que o público estivesse ali por causa do tema – a violência contra a mulher. Pode ser que fosse pelo ator – Domingos Montagner, o Santo da novela Velho Chico. Quando conversou com o repórter, o diretor Marcos Schechtman falou com prudência de sua expectativa de público. “Na verdade, pode parecer arrogância, mas prefiro dizer que não tenho nenhuma. Fizemos o filme com todo o empenho, tenho um tema forte, um ator excepcional, e que está em evidência na televisão. Tudo isso pode ajudar, e espero que ajude, mas o momento é de refluxo para o cinema brasileiro, principalmente o que não for de comédia.”

Não vai na fala de Schechtman nenhum preconceito contra a comédia, mas tem havido algum preconceito de parte da crítica quanto ao que seria o melodrama dentro de Vidas Partidas. “Grandes autores da história do cinema recorreram ao formato do melodrama, mas no Brasil ainda há preconceito, porque essa é uma linguagem associada às novelas”, ele reflete. O próprio Schechtman vem da televisão, e das novelas. Dirigiu Laços de Família, O Clone e Salve Jorge, e todas essas novelas (de Manoel Carlos e Glória Perez) também abordavam temas polêmicos. O que pouca gente sabe é que ele chegou à TV como consultor de dramaturgia por sua ligação com a literatura. Estudou o assunto, é capaz de dissertar sobre os clássicos, mas também de conceituar sobre o folhetim, e os grandes escritores que o praticaram – um Balzac, por exemplo, cujos livros, na Comédia Humana, muitas vezes são extensões de folhetins que publicava em jornais. E hoje ele é considerado o fundador do realismo na literatura moderna.

Cena do filme Vidas Perdidas Foto: Divulgação

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Schechtman fala de melodrama para deixar claro que não fez um. Vidas Partidas conta a história de um casal. De cara, há uma cena intensa, de sexo. O espectador pode até pensar que a vida desse casal anda às maravilhas, mas logo um corte mostra o marido, algemado, chegando ao tribunal, e cercado pela hostilidade da multidão. A partir daí, o público, em guarda, começa a receber as informações de forma diferente. O sexo, mais que intenso, é violento. O marido, Montagner, é um cara que precisa estar no controle. “Se você prestar bem atenção, vai ver que ele opera num certo modo de repetição. E se mostramos o sexo com a mulher e com a amante é para deixar claro que ele age de forma diferente. É dominador com a mulher e solar com a aluna que é sua amante. Com essa, exerce seu lado professor.”

O importante é que o filme esboça uma espécie de patologia no personagem de Montagner. Os fatos que vão a julgamento se referem a uma noite de violência, quando a casa, supostamente, é invadida por ladrões e a mulher é atingida por um tiro e fica paralítica. A cena é reconstituída segundo diferentes pontos de vista. E Schechtman esclarece – “Há tempos queria fazer cinema. Na verdade, fui para a televisão, mas meu interesse foi sempre pelo cinema. Quando a Naura me propôs esse roteiro, embarquei porque vi nele elementos muito interessantes para uma desconstrução”, ele diz. Naura Schneider, além de protagonista, é a produtora de Vidas Partidas. E o roteiro que tanto interessou ao diretor é assinado por Zé Carvalho. “O approach dele termina indo na contramão do melodrama, é mais antenado com o cinema de hoje.”

Uma espécie de subversão, portanto, e o melodrama criminal vai desconstruindo pistas para compor um relato duro sobre a violência doméstica e relações abusivas. “Antes de começar a filmar, fizemos um trabalho de mesa, de elaboração. Mais do que o tema, em si, o que me motivou foi a forma como já vinha tratado no roteiro. O filme pode adotar o que chamaria de defesa da mulher, mas não demoniza o homem. Nos preocupamos muito em elaborar a psicologia desse casal. É necessário, porque não conheço nenhuma história de violência doméstica que não seja a dois. Ciúme, insegurança, tudo se manifesta nele, que tem esse temperamento dominador e assume a parte ativa, mas ela não é passiva. O choque é inevitável.”

Schechtman só tem elogios para seu elenco. “A Naura esteve comprometida desde o começo, o filme não teria sido feito sem ela. Tenho ouvido críticas ao seu trabalho” – e o próprio repórter faz suas ressalvas –, “mas não concordo. Naura capta muito bem as nuances de sua personagem. Montagner é um gênio. Veste o personagem e isso significa entender e expressar suas contradições. Já na fase de preparação, a gente se perguntava – ‘Será que vamos ser mal interpretados?’ Porque o filme não propõe nenhuma condenação peremptória. As coisas não são preto no branco. Nosso empenho foi no sentido de equilibrar os personagens em choque.”

Se há uma coisa que, antecipadamente, irrita Schechtman é a possibilidade de seu filme ser descartado como ‘televisivo’. “Fizemos uma preparação de quase três meses, justamente para dominar os elementos desse drama e buscar a melhor maneira de expressá-los na tela. Um elemento muito importante é a iluminação. Mantivemos uma luz filtrada dentro da casa porque a ideia é que, sendo um homem dominador, o marido quer dominar até a luz que entra na casa.” Até que ponto o público vai perceber isso? “Mas a gente não faz as coisas para chamar a atenção, para que todos vejam. Muitas vezes, na obra de grandes diretores, as coisas estão ali, mas de forma tão sutil que a maioria nem vê.” Exemplo disso é o olhar do marido quando a mulher volta do hospital. “Esse cara é um monstro possessivo, mas diante daquele olhar você consegue ver a mulher pensando ‘Ele me ama’. Mais tarde, o marido tem aquele desabafo apaixonado no tribunal. É falso, é ensaiado? A ideia é que pode ser, sim, amor. Um amor doentio. Dar conta dessa complexidade, foi o que quisemos. Agora é com vocês (os críticos, o público).”

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