Diretor de "Cidade de Deus" espera polêmica

Fernando Mierelles dirigiu o filme mais impactante da safra brasileira recente, com imagens fortes, interpretações extraordinárias, situações explosivas, que estréia nesta sexta explosivas.

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Por Agencia Estado
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Estetização da miséria? "Mas eu filmei com luz crua, sem rebatedor." Espetacularização da violência? "Só doido para ter prazer com aquela mortandade." Preconceito contra favelado? "No meu filme?" Fernando Meirelles está pronto para a polêmica. O que ele mais queria ocorre nesta sexta-feira: Cidade de Deus chega a 99 cinemas de todo o País. Meirelles sabe que não fez só um filme. Está promovendo um fato político. Para amar ou odiar, você não pode ignorar Cidade de Deus. É o filme mais impactante da safra brasileira recente. O impacto vem das imagens fortes, das interpretações extraordinárias do elenco jovem, das situações explosivas que o diretor usa para colocar na tela o País da dívida social e dos excluídos. Mas Meirelles não estará amanhã, aqui. Ele embarca hoje para o Canadá, onde Cidade de Deus terá exibição, justamente nesta sexta-feira, no Festival de Montreal. Meirelles exibe o filme, debate rapidamente e voa para Telluride, no Colorado, onde Cidade de Deus participa de outro festival, no sábado. Na segunda, vai a Los Angeles para discutir com produtores americanos e executivos de estúdios os 12 (uma dúzia!) roteiros que lhe foram enviados, com propostas de direção. Há um filme a ser estrelado por Jennifer López, outro por Shirley MacLaine, mas ele não está muito inclinado a dirigir nenhum deles - nem o roteiro, muito interessante, de Gate of Heaven, em que Christian De Sica relata como seu pai, o grande Vittorio, usou a rodagem do filme de mesmo nome, La Porta del Cielo, durante a 2.ª Grande Guerra (só estreou em 1946), para salvar judeus italianos da perseguição do nazifascismo. Meirelles volta ao Canadá, na semana que vem, para participar de outro festival, o de Toronto. Regressa ao Brasil lá pelo dia 10 de setembro, mas fica só um pouquinho, porque logo embarca para outra turnê internacional. Para agradar ao distribuidor francês de Cidade de Deus, o filme vai participar do Festival de Marrakesh e em seguida virão, enfileirados, outros festivais. Meirelles entra na maratona ansioso para voltar ao trabalho, em São Paulo, o que inclui a produtora 02, onde faz filmes de publicidade, seu projeto na Globo - uma série estrelada por alguns dos garotos de Cidade de Deus - e a atual menina-dos-olhos do diretor: o roteiro que ele desenvolve com Bráulio Mantovani, o roteirista de "Cidade de Deus", intitulado "Intolerância 2". Sim: Meirelles vai ousar. O filme será a seqüência do clássico "Intolerância", de David W. Griffith, contando histórias que não vão se desenvolver no tempo mas no espaço, usando a geografia de diferentes lugares do mundo para debater o conceito hoje tão divulgado da globalização. Até por conta dessas andanças internacionais, Meirelles está deixando de cumprir um compromisso importante. Com Kátia Lund - que já havia co-dirigido com João Moreira Salles "Notícias de Uma Guerra Particular" -, ele foi intimado pela Secretaria de Estado de Segurança Pública Polícia Civil, do Rio, para prestar depoimento sobre a presença do traficante Paulo Sérgio Savino Magno, o Pequeno, foragido da Penitenciária Plácido de Sá Carvalho, na pré-estréia carioca de Cidade de Deus. A polícia quer saber se ele foi convidado de Kátia e Meirelles para a première. O diretor já anunciou que não e também nega favorecimentos a traficantes para poder filmar na favela. Isso ele já disse em entrevistas. Vai ter de repetir em juízo. Seus advogados tentam conseguir nova data para o depoimento, em setembro. Periferia - Meirelles é um dos publicitários mais famosos do Brasil. Sua produtora consome sozinha mais de um terço dos negativos que circulam no País. Já houve momentos em que diretores de empresas tão poderosas como a Kodak vieram ao Brasil só para conhecer esse consumidor tão importante. Há mais de 20 anos, ao estrear na direção (com o documentário Garotos da Periferia, sobre punks), Meirelles começou a trilhar o caminho que o trouxe, no cinema, a Cidade de Deus. O primeiro longa de ficção não conta: ele só assumiu a co-direção de Menino Maluquinho 2, com Fabrizia Pinto, para atender ao pedido da amiga, que ia dividir o filme com a irmã, Daniela Thomas, mas ela não pôde. Não é um filme dele ou, pelo menos, não o considera como tal. "Já estava tudo definido, o elenco, o desenho de produção, até as roupas, quando cheguei." Acrescenta a essa outra confissão: ele também acha o filme de Helvécio Ratton, o primeiro Menino Maluquinho, melhor. Domésticas - O Filme tem mais dele, embora seja um projeto conjunto com Nando Olival. E Cidade de Deus é dele, por mais que Meirelles dê crédito de co-direção (pelo trabalho com os atores) a Kátia Lund. Curiosamente, Ratton está de novo na sua cola, com Uma Onda no Ar, sobre a criação da Rádio Favela, de Belo Horizonte. São dois filmes diferentes: o de Meirelles narra aventuras individuais para traçar um amplo painel sobre a realidade urbana que inclui a violência, claro, no País. O de Ratton mostra mais um esforço comunitário, coloca os indivíduos a serviço do grupo. É generoso, ideologicamente talvez seja mais palatável e até responsável, mas não tem o impacto de Cidade de Deus, você vai ver. De onde vem esse impacto? À saída da pré-estréia de Cidade de Deus, um espectador fornecia a chave: "Estou arrasado; isso aqui não é Hollywood, não é nenhuma fantasia de Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone; vou sair daqui e encontrar esse Brasil real ali fora." Não é o Brasil dos números que o governo utiliza para tentar empurrar o País para o Primeiro Mundo. O Brasil ainda tem os pés atolados, bem firmes, no Terceiro Mundo. Meirelles não poupa elogios ao seu elenco jovem. Para expressar a cara do Brasil na tela, ela não queria globais. Queria rostos desconhecidos. Depois de muita procura, testes com milhares de candidatos, chegou aos atores. Foi só o ponto de partida de outra etapa do trabalho. Os atores foram preparados por Fátima Toledo e, logo em seguida, iniciaram uma etapa de laboratório de interpretação com Kátia Lund. Aprenderam a conviver com a câmera, seguidos por ela o dia inteiro. Improvisavam em cima das situações do roteiro, criaram o vocabulário que está no filme. São todos bons garotos. Vivem na favela, em comunidade. Não são bandidos. Alexandre Rodrigues, que faz o protagonista, Buscapé, repete o que diz Leandro Firmino da Hora, o Zé Pequeno. Na tela, esse último é tinhoso. "O mérito é da Fátima, foi ela que trabalhou para desenvolver essa raiva dentro de mim." Filho do autor do livro, Paulo Lins, Frederico Lins, que faz uma ponta, dá sua contribuição ao debate. Põe a mídia na fogueira. Lembra que seu pai, ao lançar o livro, era chamado de favelado, passou a ex-favelado e só agora, internacionalmente famoso, é escritor. Meirelles quis transpor para o cinema aquilo de que gostava no livro. Ele é repetitivo, mudam os personagens, mas as histórias se repetem. E é pela repetição que o livro alcança a eficácia de sua crítica social. O diretor admite que teve problemas com o escritor. Na cena em que o futuro Zé Pequeno aparecia pela primeira vez, o narrador informava que algumas pessoas parecem ter uma pré-disposição para o mal. Lins vetou a frase, Meirelles concordou. Acha que a sociedade, ao marginalizar as pessoas, ao criar necessidades que elas não conseguem atender, estimula a violência. Mas acredita que existem Zés Pequenos que vão além. O noticiário está do lado dele, repleto de criminosos que agem com desnecessários requintes de crueldade. Ele bem que tentou humanizar Zé Pequeno: "É o fato de a mulher ter se recusado a dançar com ele que desencadeia toda a guerra; talvez, se ela tivesse dançado, se o achasse bonito, a história fosse outra." As críticas ideológicas vão vir, ele sabe. Aproveita para admitir, rindo: quando Buscapé diz que jornalista não sabe fazer amor - a expressão, no filme, é mais crua -, ele se antecipava às críticas. "Foi a minha pequena vingança."

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