Diretor busca ética em Kurosawa

Babenco concentra atenção nas leis próprias que vigoram no interior do sistema penitenciário e se inspira nos filmes do cineasta japonês

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Por Agencia Estado
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É um mundo com leis próprias. No interior do presídio, o que vale é a palavra de um homem, que precisa ser honrada. Aqui fora, a palavra foi tão aviltada que os homens criaram uma série de mecanismos - contratos e por aí afora - para tentar fazer valer o que dizem e acertam. Essa primazia da palavra empenhada dos marginalizados, uma verdadeira ética, foi o que Babenco quis colocar em Carandiru, o filme. No Carandiru, a palavra empenhada é tudo. Babenco tem consciência de estar fazendo um filme ambicioso e raro. Sua estrutura narrativa não se assemelha a nada que conheça. Tem algo de Robert Altrman, que gosta de soltar a câmera entre diversos personagens. Em Carandiru, são 18 personagens principais, incluindo o médico (Luiz Carlos Vasconcelos, no papel de Drauzio Varella) que introduz as histórias. Altman é uma referência possível, até porque o filme de Babenco é Cenas da Vida no presídio. Mas tão importante quanto Altman é Akira Kurosawa. A ética do seu filme, Babenco diz, vem do mestre japonês. Os personagens de Carandiru podem ser criminosos violentos, mas são humanos. Possuem mãe, namorada, filhos. Não se trata de humanizá-los para tentar justificar suas ações. O filme não é maniqueísta. Quer tornar os personagens convincentes sem perder o vigor crítico. Um preso diz que estuprador tem de ser morto. Outro repete uma história que Drauzio ouviu: "Desconfie do que ouve aqui dentro, doutor; as pessoas são muito mentirosas." E por que mentem? Babenco arrisca uma interpretação: "Para perdoar a si mesmas e conviver com as barbaridades que cometeram." Não é um filme sobre o massacre do Carandiru, embora o massacre esteja lá, nos 15 ou 20 minutos do desfecho, que reconstituem com vigor o que se passou dentro do presídio, naquele dia e hora fatídicos. Babenco lembra Stanley Kubrick. O gênio de 2001 tinha planos de fazer um filme sobre o Holocausto. Quando Steven Spielberg fez A Lista de Schindler, os amigos tentaram demovê-lo. O filme que ele queria fazer já teria sido feito. Kubrick retrucou: "Schindler não é sobre o Holocausto, mas sobre 400 judeus que se salvaram." Carandiru é um filme com as histórias de presos que Drauzio ouviu e contou magistralmente. Babenco também conta histórias dos sobreviventes do massacre, mas não quis contar só as histórias deles. Entre seus personagens principais também estão os que morreram. Senso crítico - Uma visita ao set de Carandiru tem um efeito de certa forma desmistificador. A cena rodada no sábado é complicada. Babenco faz seu trabalho em 15 minutos, como diz. Entra no set, percorre o corredor, posiciona os atores, define onde vai estar a câmera. Depois disso, senta-se diante do monitor de vídeo, a 10 ou 15 metros do local em que se passa a ação. "Se ficasse lá dentro estaria muito envolvido na confusão, perderia a concentração e o senso crítico." Acende um charuto, não para relaxar, mas para ficar consigo mesmo. O vídeo lhe dá o ângulo da cena. Ele discute detalhes com o diretor de fotografia, o grande Walter Carvalho, de Central do Brasil, Lavoura Arcaica e Abril Despedaçado, que fica correndo de um lado para outro: "O Walter briga comigo porque não fico olhando no visor; confio nele; é como pegar um carro com motorista; não fico discutindo detalhes do motor com o cara; tenho confiança nele e ele me leva." No set, é a mesma coisa. Babenco precisa da técnica, mas ela não é um fim em si mesma. É só uma ferramenta de que se serve. "Sou um contador de histórias." Ele delega tarefas e responsabilidades, mas admite que não é fácil. "Delegar é a coisa mais difícil que existe." Sua fama é de autoritário e turrão. Durante todo o tempo em que a reportagem esteve no set de Carandiru, presenciou só um atrito. Alguém tomou uma decisão sem consultar o diretor. Babenco não admite isso. "Quem está pondo a cara para bater sou eu, tenho de ser consultado." Mas não chega a brigar. Durante boa parte dos anos 1990 ele esteve à morte, devastado pelo câncer. Curou-o o transplante de medula. A experiência foi decisiva. "Depois do que passei tenho outra perspectiva das coisas; sou do bem", autodefine-se. O máximo da desmistificação: Babenco delega tanto as tarefas e tem tanta confiança em sua assistente, Márcia Farias, do clã Farias, que é ela - e não ele - quem grita "Ação!", quando a câmera começa a filmar. Mas revela: "Quando sinto que o ator precisa da minha presença ou da minha autoridade, aí vou lá e eu mesmo digo."

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