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De Palma reinventa o noir em "Femme Fatale"

"Queria libertar o noir de suas regras", diz o diretor. Seu mais recente thriller, com Rebecca Romijn-Stamos e Antonio Banderas, estréia nesta sexta-feira

Por Agencia Estado
Atualização:

Brian De Palma aproveitou o quadro do Festival de Cannes de 2001 para realizar a seqüência de abertura de Femme Fatale, seu thriller que estréia amanhã. Você não precisa rezar pela cartilha do conceito de pós-moderno para divertir-se com a mulher fatal do diretor. Ele se aproxima estranhamente de Cidade dos Sonhos, o filme de David Lynch que concorreu em Cannes no ano passado. Duas mulheres, uma loira e uma morena, um clima de sonho invadindo a realidade e misturando as coisas, a mesma disposição de discutir a linguagem e seus signos. De Palma sabe que ninguém influenciou ninguém. "Essas coincidências acontecem. Artistas são antenas que captam os movimentos da sociedade. Ainda não vi o filme dele, mas deve ser algo bem intrigante. David é sempre alguém que está fugindo da mesmice." Justamente a seqüência inicial de Femme Fatale. Rebecca Romijn-Stamos usa um disfarce para introduzir-se no banheiro no qual está a atriz que usa, como vestimenta, uma roupa formada por jóias valiosíssimas. O plano é que ela seduza essa starlette, num jogo homossexual, para roubar-lhe a roupa, com a participação de um cúmplice. A cena é visualmente muito elaborada. De Palma explica por que discorda de um dos dogmas do cineasta que foi seu mestre, Alfred Hitchcock. O rei de suspense diz a François Truffaut, no livro Hitchcock-Truffaut - que a Brasiliense deveria reeditar -, que sempre foi contra os inícios retumbantes de filmes, porque achava que depois era muito difícil manter o mesmo nível de intensidade das cenas até o final, sem prejuízo da história. "Hitchcock era contra a pirotecnia das aberturas à James Bond e acho que tinha razão, pois com o tempo elas terminaram virando paródias da paródia, mas eu me esforço sempre para criar esses começos excitantes. Acho que depende muito deles o grau de adesão do espectador ao que vai ser mostrado, a seguir." Sempre quis filmar na França. Teceu a trama de Femme Fatale a partir de referências, como "d´ habititude" (emprega a palavra em francês). E teve a cumplicidade de amigos: Régis Wagnier, de Indochina, aparece como o diretor do filme dentro do filme que está sendo exibido em Cannes, Leste-Oeste. "Thierry (o diretor de fotografia Thierry Argobast) diz que eu gosto de brincar com a memória visual do espectador, usando cenas que fazem parte do nosso imaginário, gravadas em nossa mente pelo cinema, ao longo de mais de um século. Sei que isso é verdade e admito que esse é um movimento muito consciente em mim." Depois de décadas de teoria de cinema de autor e da arte da referência, estabelecida pelos diretores da nouvelle vague, De Palma acha que ninguém mais pode fazer cinema achando que está criando imagens originais. "Duvido muito que ainda se possa criar algo que nunca tenha sido visto ou feito antes. Podemos eventualmente até fazer melhor, porque para determinadas coisas a técnica evoluiu muito e o cinema é uma arte que depende muito da tecnologia, mas para mim o desafio é criar um discurso novo e estabelecer uma estética pessoal a partir de elementos que fazem parte do imaginário do espectador como do meu próprio." Pistas - Vários cineastas o influenciaram, um particularmente - Hitchcock. No início de sua carreira, em filmes como As Irmãs Diabólicas e, depois, em Vestida para Matar e Dublê de Corpo, De Palma adquiriu a fama de discípulo aplicado do mestre. Com o tempo, mostrou que também era um criador e não apenas um plagiador, mas manteve a fidelidade à cena primitiva do seu cinema, que ocorre ser a cena mais famosa de um clássico de Hitchcock: o assassinato de Marion Crane na ducha, em Psicose. Houve depois referências a Eisenstein (O Encouraçado Potemkin) em Os Intocáveis e a Stanley Kubrick (2001, Uma Odisséia do Espaço) em Missão Impossível, o primeiro da série com Tom Cruise. De Palma reconhece que gosta de usar as imagens como pistas, transformando-as em peças de um jogo de memória que permite ao espectador situar-se diante do desenvolvimento da história. Isso funciona especialmente junto aos cinéfilos. "Não faço filmes só para eles, mas acho que há cumplicidade entre os cinéfilos e eu. Somos membros do mesmo clube." Laura, a personagem de Rebecca Romijn-Stamos, é o eixo da narrativa de Femme Fatale. Ela encerra o próprio sentido do título do filme. "Quis homenagear as mulheres fatais dos clássicos do cinema noir que fizeram a minha cabeça. Laura é uma manipuladora nata. Imaginei-a desde logo com essa incrível capacidade de mudar de estilo e identidade. Como o personagem de Antonio Banderas, Nicolas, tentamos decifrar seu mistério e, quando nos damos conta, estamos envolvidos em sua teia de manipulação." Uma personagem dessas exige uma atriz especial e é aí que entra Rebecca Romjn-Stamos. Ela joga no time de Monica Bellucci. É uma deusa, uma das mulheres mais belas do cinema atual. Loira ou morena, Rebecca, como sabem os espectadores de Rollerball, o remake de John McTiernan, é um legítimo arrasa-quarteirão. "Talvez pudesse fazer o filme com outra atriz, mas Rebecca trouxe uma qualidade que considero fundamental para o papel. Queria me inspirar nas mulheres fatais dos anos 1940 e 50 e trazê-las para a atualidade. Com Rebecca isso ficou mais fácil porque ela é uma mulher moderna até a raiz dos cabelos." Na história, Rebecca rouba as jóias e é perseguida pelos antigos companheiros de crime, que acabam de sair da cadeia. Sete anos depois, ela virou a mulher do embaixador americano em Paris e é caçada por um fotógrafo, um paparazzo, que espera fazer dinheiro com a imagem que ela, até por instinto de sobrevivência, tenta manter longe da mídia. A trama está sempre mudando e tomando rumos inesperados. Mais uma vez, De Palma pode ser acusado de machismo, cinismo. Seu olhar sobre a mulher beira o chauvinismo, é verdade, ele reconhece, mas é uma construção intelectual que é bobagem julgar em termos puramente morais e isso ele também está de acordo. Há deslumbrantes movimentos de câmera. "Queria libertar o noir de suas regras", ele diz. O feticismo reina: uma corrida de Rebecca é acompanhada pela câmera rente ao chão, seguindo seus sapatos de salto-agulha. Não é de hoje que voyeurismo e manipulação são decisivos no cinema do diretor, no qual o fake vira uma ferramenta para investigar a realidade. Ele confessa que, por menos realistas que sejam seus filmes, cada um deles tenta dar seu testemunho sobre o homem no mundo. "Somos todos voyeurs no cinema, não há um diretor que não seja manipulador." Dessa maneira, se há um tema em Femme Fatale, em última análise é o cinema e nossa relação com ele. Femme Fatale. Suspense. Direção de Brian De Palma. EUA-Fr/2002. Duração: 115 minutos. 16 anos.

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