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Daniel Day-Lewis volta à tela após cinco anos

Durante sua ausência no cinema, ator de Gangues de Nova York foi pai e se tornou aprendiz de sapateiro na Itália. Em entrevista ao Estado, ele conta por que aceitou filmar com Scorsese e adianta não ter projeto para voltar ao set tão cedo

Por Agencia Estado
Atualização:

Cada performance de Daniel Day-Lewis costuma ser tão intensa, que muita gente ao discorrer sobre esse ator inglês se esquece de que Minha Adorável Lavanderia, Meu Pé Esquerdo, A Insustentável Leveza do Ser, O Último dos Moicanos e Em Nome do Pai são filmes produzidos e lançados há mais de dez anos. Fato é que Day-Lewis estava ausente do cinema desde 1997, quando interpretou o pugilista irlandês Danny Flynn no longa O Boxeador, de Jim Sheridan. Em seu voluntarioso hiato de cinco anos, Day-Lewis se dedicou à família (ele é casado com a escritora e cineasta Rebecca Miller, filha do dramaturgo Arthur Miller, e teve com ela um filho em 98) e cumpriu várias tarefas diferentes. Uma delas na cidade italiana de Florença, onde se exilou por um tempo, tornando-se aprendiz de um sapateiro local. Quem trouxe Day-Lewis de volta às telas foi Martin Scorsese, com quem o ator já havia trabalhado em A Época da Inocência (1993). Scorsese precisava do inglês novamente para um filme passado na Nova York do fim do século 19. Em Gangues de Nova York - em cartaz na cidade e que rendeu a Day-Lewis indicação para o próximo Oscar -, Scorsese transporta o ator para sete anos antes do período de A Época da Inocência. Em 1863, Manhattan era uma cidade que vivia um convulsivo problema social: a enorme contingência de imigrantes que desembarcava todos os dias da Irlanda. Nesse cenário, Day-Lewis assume, com bravura e uma rudeza além da compreensão, o papel inspirado no verdadeiro e famoso Bill Poole, açougueiro dândi e chefe de uma gangue de nativos que se opunha ao processo de imigração. Para fins dramáticos, Bill precisa enfrentar a fúria de Amsterdam Vallon (Leonardo DiCaprio), que volta para vingar a morte do pai (Liam Neeson), chefe de uma gangue de irlandeses e assassinado pelo rival anos antes. Por que você aceitou fazer Gangues de Nova York? Daniel Day-Lewis - Martin procurou-me. Uma vez que você entra na órbita dele, é muito difícil sair. E senti, não sem um pouco de pavor, que estava entrando naquele mundo. E, no final, era mais fácil fazer o filme do que evitá-lo. Digo que senti certo pavor porque, num momento preliminar, não sabia muito bem o que o filme envolveria. E algo também me dizia que seria como entrar num longo túnel sem fim à vista. Não estava 100% convencido de que gostaria de voltar a fazer um filme. Existem todos esses rumores sobre você... (interrompendo) Na Inglaterra, acham que sou louco. Mas você não vai perpetuar esse rumor, vai? Bem, você é tido como um dos melhores atores de sua geração, mas decidiu não trabalhar todos estes anos. O que aconteceu: ficou amargo em relação à profissão e decidiu se aposentar? (risos) Aparentemente muitas pessoas disseram em meu nome que havia me aposentado. Mas não é verdade. Amo tanto este trabalho, que estou ciente da necessidade de passar um tempo longe dele também. Atuar é como dar doce a uma criança: geralmente o ator não sabe quando parar. E eu, em determinado momento de minha carreira, poderia ter continuado a fazer vários filmes numa velocidade impressionante. Mas, por alguma razão, por um pequeno pedaço de autoconhecimento que me foi dado naquele instante, esse impulso de trabalhar não estava se regenerando em mim. Além disso, outras coisas me interessaram e odiaria ter feito qualquer trabalho que me excluísse de tudo aquilo que estava me dando prazer por fora. Preciso acreditar que tudo o que fiz nesses intervalos foi também uma forma de nutrir meu trabalho. Fato é, que um set de filmagens é um lugar que não me ensina nada. Como assim? Vamos dizer que eu passo de seis a oito semanas me preparando para um filme. Pode não ser um aprendizado num nível consciente, mas é uma maneira pela qual você acaba incorporando informações dentro de si próprio. Você está se auto-recheando. Depois, você começa a filmar, começa a dar de si a uma outra pessoa. Todos os ingredientes que você acumulou na preparação agora estão sendo usados. Naturalmente, existe uma grande recompensa nesse processo, além de muitos momentos maravilhosos. Mas esses momentos, quando colocados juntos, não te reabastecem e, no fim deles - e acredito que muitos atores devem concordar comigo -, você sente um imenso vazio. Foi por isso que decidiu se mudar para Florença, onde trabalhou como aprendiz de sapateiro? Eu sei que você tem de me perguntar isso, mas não significa que terei de respondê-lo. Martin Scorsese disse que não o chamava por Daniel, pois você incorporou o personagem durante todo o processo de filmagem, o que chegou a assustar alguns de seus colegas de cena. O que diz sobre isso? (risos) Para responder a essa pergunta, preciso voltar no tempo. Eu nunca comentei com a imprensa, nem com ninguém, o meu processo de criação e preparação de um personagem. Nunca e ponto final. Mas as pessoas, ao longo dos anos, se sentiram na obrigação de falar em meu nome. "Ah, ele se trancafia numa prisão para ver como é a vida de um detento; nossa, ele passa oito semanas numa cadeira de rodas" ou ainda: "Incrível, ele se cobre de sujeira até o pescoço só para torturar a si mesmo." Veja bem: para mim, o trabalho que faço tem alguma lógica doida. Nem sei se é de grande valia naquele momento, mas instintivamente acho que devo fazer o trabalho do meu jeito, do jeito que me faça entender a vida que estou tentando acessar. Esse é o prazer para mim, pois ele sempre emana da resposta de uma forte curiosidade que tenho. Para responder plenamente à sua pergunta, tenho de dizer que estamos envolvidos num trabalho muito estranho. Fazer cinema é coisa muito estranha, atuar é outra coisa estranhíssima. Imagine passar sua vida tentando convencer o público de que você é outra pessoa. Posto isso, pergunto: que tipo de preparação pode ser mais louca do que o próprio ato de interpretar? Scorsese também disse que você escutava Eminem todos os dias antes de entrar em cena. E que sua mulher teria tido dificuldades de "encontrar" o marido dela durante as filmagens. (risos) Em algum ponto Martin disse que me escolheu para fazer Gangues de Nova York porque eu entendia a natureza da raiva. E decidi acreditar que ele estava tentando me dizer, que ele sabia que eu precisava soltar essa raiva em cena e não me intimidar por ela. Soltar voluntariamente emoções das quais você não tem o menor controle, não é algo muito comum entre os seres humanos. Então, é verdade que eu estava de pavio curto em alguns momentos. Mas nunca levei isso para casa. Nunca torturei minha família com isso. O que mais admira em Scorsese? Tudo (risos). Quando penso em Martin, sou sempre transportado para o tempo em que era criança e vivia no Sudeste de Londres. Naquele período, a coisa mais próxima da gente, além da religião, era jogar futebol na rua. Por ventura, alguns de nós também foram atraídos pelo cinema. E nunca mais vou me esquecer do momento em que vi Caminhos Perigosos no cinema, pois aquele foi um filme que me trouxe a sensação de que o mundo tinha se expandido dentro de mim. Desde então, sempre esperei com certa ansiedade o próximo filme daquele diretor. Mesmo que tivesse iniciado uma carreira no teatro, nunca poderia imaginar que um dia chegaria a trabalhar com Scorsese. Para muitos, na Inglaterra, o teatro tem a tradição de ser o auge na vida de um ator. Mas não para mim, devo confessar. Há uma parte de mim - e sobre a qual mantenho um pouco de sigilo, talvez até por ter um pouco de culpa envolvida -, que percebe nos filmes muito mais mistério do que nas peças teatrais. É claro que alguns desses mistérios agora já foram revelados por muitos (risos), mas gosto mesmo assim. Quando Martin entrou em contato comigo para fazer a A Época da Inocência, vivi um prolongado momento de júbilo. Sua mulher, a escritora Rebecca Miller, agora também é cineasta. "Personal Velocity", que ela filmou em 2001, venceu o Festival de Sundance no ano passado. Por ser a estréia dela no cinema, você a ajudou de alguma forma? Conversei muito com ela num período preliminar, mas obviamente me mantive longe das filmagens e da edição do filme. Acho Personal Velocity um trabalho maravilhoso. Existe uma longa história por trás desse filme, que vou tentar resumir. Em certa ocasião, liguei para Harvey Weinstein (co-presidente do estúdio Miramax) para tentar obter algum dinheiro dele para outro filme que minha mulher queria fazer. Harvey nunca nos deu a grana, mas disse que Martin estava atrás de mim. Foi daí que surgiu o convite para Gangues. E foi também, como resultado daquela frustração de não conseguirmos financiamento para um filme e de termos de lidar com a glutonice desse mundo miserável que está por trás dos filmes, que minha mulher começou a escrever os três contos que resultaram no novo filme dela. Você vai continuar fazendo filmes? Não sei. Neste momento é difícil para mim antever qualquer futuro. E não tenho nenhum projeto em vista. Nesse seu hiato de cinco anos, não existiu nada do mundo do cinema que lhe fez falta? Claro! Todo o nonsense.

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