Cronenberg é obcecado por perfeição

Spider, o primeiro grande filme do ano, não oferece emoções fáceis a ninguém, com sua reconstrução da realidade pelo ângulo de um psicótico

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Por Agencia Estado
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David Cronenberg é muito exigente em relação ao próprio trabalho. Consegue analisar seus filmes isoladamente e em relação ao conjunto da obra. Mas ele não gosta de rever os próprios filmes nem os de outros diretores de que, por ventura, tenha gostado. Acha que nossa percepção varia de acordo com o momento e, portanto, não existem juízos definitivos sobre filmes. É obcecado pela idéia da perfeição. Acha que viu um só filme perfeito na vida: "Inverno de Sangue em Veneza", de Nicolas Roeg. Nunca quis revê-lo com medo de que o momento mágico não se reproduzisse e ele tivesse de reformular sua opinião. Cronenberg também acha que "Spider" é seu filme mais perfeito ou o que mais se aproxima da perfeição. Compara-o, em sua obra, a "Gêmeos - Mórbida Semelhança", que também carregava nos climas e na densidade psicológica dos personagens. "Spider" baseia-se no romance de Patrick McGrath. Ganhou, no Brasil, o subtítulo de "Desafie Sua Mente". Cronenberg disse que talvez não fosse necessário, mas faz a ressalva de que não conhece o mercado brasileiro. Se o distribuidor, o Grupo Paris, colocou esse acréscimo ao título é porque acha que poderá torná-lo mais atraente ou, mesmo, mais explicativo para o público e isso é válido. Talvez seja só uma vontade de diferenciar "Spider" (Aranha) de "O Homem-Aranha", que foi o maior sucesso do ano passado nos cinemas brasileiros. Há elementos de Alfred Hitchcock e Roman Polanski, de filmes como "Psicose" e "O Inquilino", mas, em entrevista à AGÊNCIA ESTADO, o próprio Cronenberg esclarece que as maiores influências sobre "Spider" foram filosóficas e literárias. Cita Kafka e Dostoievski. É um filme sobre um louco, mas não sobre a loucura. Prefere ao trauma o drama. "Spider" é, acima de tudo, um drama existencial. O personagem é um psicopata edipiano que comete um tríplice assassinato. Cronenberg tem de falar sobre a psicose, propriamente dita, mas o que lhe interessa realmente é a reconstrução da realidade pelo ângulo de um psicótico. Isso já levou mais de um crítico a dizer que Cronenberg faz aqui uma metáfora da loucura para falar de um descompasso ou defasagem que é fundamental. O psicótico, como qualquer pessoa, quer reconstruir o mundo, mas não o faz da mesma maneira comumente aceita pela vida em sociedade. É o seu drama e, mais até do que drama, a sua tragédia. É a idéia no centro de "Spider", o filme. O diretor confessa que gostou do roteiro, mais do que livro e, mesmo assim, teve de limpar esse roteiro de certos excessos. O escritor havia enchido seu roteiro de criaturas gosmentas, como aquelas que o próprio Cronenberg colocou em "Mistérios e Paixões", sua adaptação de "Naked Lunch" (Festim Nu), de William Burroughs. Ele suprimiu tudo isso. Foi rigoroso consigo mesmo e com o público. Talvez "Spider" faturasse mais nas bilheterias, atraindo a numerosa fatia teen do público com esses recursos fantásticos, mas com certeza perderia em intensidade. E o que caracteriza o filme que estréia nesta quinta-feira é justamente a força e o rigor dramático da relação entre os personagens Spider, vivido por Ralph Fiennes, seu pai (Gabriel Byrne) e as três figuras maternais criadas por Miranda Richardson. Arma-se, em torno desses personagens, uma teia estética e dramatúrgica que discute temas como identidade, normalidade e sexualidade. É o primeiro grande filme do ano. Não oferece emoções fáceis a ninguém.

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