Crítica: O road movie lúcido e emocionante de um trabalhador precário

A narrativa se dá em tom realista e mescla momentos de ternura e outros (raros) de alegria ao tônus melancólico de fundo

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Por Luiz Zanin Oricchio
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Não há dúvida de que o tom da melancolia predomina em Arábia, esse maravilhoso filme de Affonso Uchôa e João Dumans. Esse é o sentimento que enfeixa as memórias de Cristiano pelas quebradas de Minas Gerais e lhes empresta a consistência de um conjunto estético sólido. 

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São, quase sempre, memórias do trabalho, escritas pelo personagem em um caderno. A justificativa: em seu emprego mais recente, Cristiano começou a fazer parte de um grupo de teatro da empresa e foi estimulado a relatar sua vida por escrito. Uma espécie de laboratório, que se transforma em espinha dorsal desse poderoso depoimento sobre o que significa o mundo do trabalho precário para as pessoas mais simples deste país. 

Cristiano deambula de lá para cá. Solto, depois de cumprir pena por um pequeno crime, aceita os serviços que o acaso lhe propõe. Dirige veículos, labuta em obras, pinta paredes de um bordel, colhe mexericas e vai terminar como operário numa metalúrgica na periferia de Ouro Preto. Uma dessas indústrias antiquadas, que comem o corpo e bebem a alma do funcionário. Em meio a essas andanças, num dos empregos mais estáveis que consegue, conhece aquela que poderia ter sido a mulher de sua vida, Ana. 

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A narrativa se dá em tom realista e mescla momentos de ternura e outros (raros) de alegria ao tônus melancólico de fundo. Cristiano se lembra de um dia passado num parquinho de diversões mambembe, quando começou a namorar Ana. “Daria tudo para voltar àquela tarde”, escreve. Mas o tempo não volta, a não ser na saudade e no processo da escrita. 

Há momentos de companheirismo e amizade viril entre conhecidos de estrada e de labuta. Bebem, tocam violão, cantam, contam piadas. Muitas dessas sequências se dão em tempo real, porque a ideia é levar o espectador à imersão num modo de vida que provavelmente não é o seu. 

Há também o humor proletário, dos trabalhadores não especializados que riem de si mesmos para melhor sobreviver. Falam sobre o pior tipo de saco para carregar. Cimento? Açúcar? Areia? O interlocutor de Cristiano, mais velho e experiente, garante: “Não tem nada pior do que carregar porco vivo”. 

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São detalhes, que vão se encaixando na narrativa, uns após os outros, e formando o mosaico no qual o sentido de uma existência vai sendo desenhado. Se é que se pode aplicar o termo “sentido” a essa trajetória feita de cacos do acaso, de luta miúda no dia a dia, da mão para a boca, como se costuma dizer. 

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A ternura com que Cristiano é retratado torna grande esse filme sobre uma vida “pequena”. Dá-lhe aura humanista e dura, nunca boboca. Sugere, sem ser didático ou panfletário, o déficit estrutural brasileiro que faz dos Cristianos meras peças de reposição, facilmente descartáveis em um país sem projeto e talvez sem futuro. 

A alusão ao conto de Joyce dá a entender que, também para Cristiano e seus amigos e colegas, a festa termina antes que eles a ela cheguem. É bem política a beleza triste que se desprende dessa história. 

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