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Crítica: Filme evita polêmica fácil e tom ameno

Documentário sobre a ex-chacrete Rita Cadillac, dirigido por Toni Venturi, é um bom filme

Por Luiz Zanin Oricchio - O Estado de S. Paulo
Atualização:

O documentarista escolhe seu sujeito (ou personagem) e a maneira de tratá-lo. Trabalhando, enfrenta o acaso e, se for inteligente, o assimila ao projeto. O acaso é aquilo que, em sua pesquisa prévia, não estava previsto. Em geral, essa abertura para a descoberta é o melhor presente que um documentarista pode receber. O cineasta que se ocupa de documentários está em melhor posição do que os outros para saber da rica imprevisibilidade do ser humano.

 

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Tudo isso aconteceu com Toni Venturi em Rita Cadillac - A Lady do Povo. A começar pelo título, que lhe foi "soprado" pelo cineasta Djalma Limongi Batista, diretor de Rita no filme Asa Branca - Um Sonho Brasileiro (1981). Nesta história de um jogador de futebol (Edson Celulari), Rita tem um pequeno papel, que desempenha com intensidade. Djalma fala sobre ela no depoimento a Toni. Diz que, quando ela chegou ao set, foi uma decepção. Parecia uma mulher comum. Em cena, cresceu. Transformou-se no "Cadillac" rabo-de-peixe que lhe servia de (merecido) apelido no programa do Chacrinha. Djalma acrescenta, sobre a moça: "É uma lady, uma lady do povo."

 

Eis aí a senha. Alguém vindo do povo, que trilha um caminho inusitado e torna-se uma sex symbol, também das classes populares. Rita do Chacrinha, Rita dos presídios, Rita dos garimpos. Bem dotada de bumbum, a preferência nacional. Uma atriz da sensualidade, como reconhece o dr. Drauzio Varella, que a viu em atuação no Carandiru diante de uma multidão de presos que a cobiçava, porém com respeito. Outras dicas foram sendo dadas ao cineasta. Entre elas a divisão entre a "persona" Rita Cadillac e a mulher comum Rita de Cássia. Tudo ajuda na composição da personagem: essa dualidade, e a dignidade com que ela deve ser tratada. Tudo determina a maneira como a câmera é colocada, como o material é montado, enfim, com qual recorte do real se vai trabalhar.

 

Isso não significa que Toni Venturi trabalhe num registro politicamente correto que, como se sabe, é a melhor maneira de escamotear a realidade, jogando o que for minimamente polêmico para baixo do tapete. O diretor não ignora os percalços da personagem, e nem mesmo poupa cenas mais pesadas de sexo explícito, gênero a que Rita se dedicou já em idade pouco recomendável.

 

O contraste entre essa atriz do pornô e o vestido de noiva branco com o qual se casa já madura faz o filme vibrar, pois sua intensidade é dada por um ritmo oposto ao monocórdio. Há disparidades, arestas, surpresas e contradições que iluminam a personagem e, por isso, lhe conferem humanidade. Se as entrevistas caminham no sentido da unanimidade, o filme sabe onde encontrar aquilo que as problematiza - a própria fala da atriz (vamos chamá-la assim) em seus movimentos erráticos ao longo da vida evocada.

 

A opção, claro, é de respeito pela personagem. Mas, pela atenção ao contraditório, o filme se livra do tom chapa-branca. Por outro lado, uma vida como de Rita Cadillac/Rita de Cássia teria tudo para se prestar ao folclórico; ou tudo para ser pasteurizada pelo medo da incorreção. A virtude é manter-se nesse fio de navalha entre duas tendências opostas, posição incômoda adotada em benefício do espectador. Afinal, uma das recompensas de quem vê um documentário é a descoberta de um personagem em sua complexidade.

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