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Crítica: 'Dogman', a brutalidade que surge da ausência da mediação política

A Itália do filme de Matteo Garone nada tem de bela e mostra gente tentando a sobrevivência do dia a dia, explorada pelos mais fortes

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Dogman, de Matteo Garrone, deu a Palma de Ouro de ator a Marcello Fonte, seu protagonista. É um caso curioso, pois de antiglamour. Marcello, personagem com o mesmo prenome do ator, é o dono de um pet shop na periferia de Castel Volturno, soturna cidade da Campânia, ao Sul do país. É um local semidesértico, com prédios abandonados e onde grassa a violência. 

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A história, baseada em fatos reais, se concentra na relação entre o frágil Marcello e o brutamontes Simoncino (Edoardo Pesce), um encrenqueiro que atormenta os outros moradores com seus crimes e ações violentas. 

A relação entre Marcello e Simoncino, ambivalente, misto de amizade, cumplicidade e abuso, encaminha-se para um desfecho trágico, de um brutalismo seco. Filme muito forte.

Cena do filme Dogman, de Matteo Garrone, com Marcello Fonte eEdoardo Pesce Foto: Festa do Cinema Italiano

Deve ser dito que, em determinados filmes, Garrone exerce uma espécie de realismo bruto. Mais que nada esconder, parece se empenhar em expor o desagradável e buscar o limite de tolerância estética do espectador.

Era já assim em seu filme mais famoso, Gomorra (da obra de Roberto Saviano) sobre a “máfia” napolitana, a Camorra. A Itália que mostra é o avesso do cartão-postal de um dos países mais belos do mundo, dono de boa parte do patrimônio artístico da humanidade e de uma gastronomia de invejar. 

Pois bem, essa Itália nada tem de bela, nem de romântica, pitoresca ou mesmo sagaz. Mostra gente na tentativa de sobrevivência do dia a dia, explorada pelos mais fortes e tendo que tirar dos mais fracos a tentativa de manter a cabeça fora d’água.

Castel Volturno, nesse sentido, apareceu como uma locação já pronta para essa estética da desolação. É um daqueles lugares opressivos, em que toda esperança é mantida do lado de fora, como dizia Dante Alighieri na entrada do inferno em sua Divina Comédia

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Nesse ambiente sujo pode reinar um tipo como Simoncino, um hércules sem ética, viciado em drogas e violência. Mas é também aí que mora sua antítese, o frágil Marcello, que lida com cães ferozes e os amansa. Marcello vive um cotidiano infeliz, no qual a possibilidade de alguma alegria resume-se em encontrar sua filha e poderem praticar o esporte que adoram, o mergulho. 

No entanto, as raras imagens idílicas são vestidas com tal carga onírica que somos levados a desconfiar que tratam mais de sonhos que de realidade. 

De qualquer forma, seriam o episódico escape de Marcello a uma realidade que o oprime cada dia mais. Não parece haver escapatória.

Frágil, ele se acerca de Simoncino em busca de proteção. É uma relação dual. O bruto tanto dá proteção como oprime. Ganha em troca sua ração de drogas e quer mais – exige cumplicidade em assaltos. A relação se desequilibra cada vez mais. 

À parte a forte trama central – o caso aconteceu, mas é aqui tratado de forma ficcional – Dogman é uma notação aguda sobre a vida atual. Em sociedades polarizadas (a Itália é uma delas), com a proximidade da anomia, do desespero e falta de confiança entre as pessoas, relações conflituosas não encontram mais mediações.

Sem intermediários críveis, a fricção é inevitável e explode em violência. Esse é o traço contemporâneo para pensar a política. Ou, melhor dizendo, a sua ausência. 

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