01 de abril de 2022 | 20h10
Uma das cenas impressionantes de Diários de Mianmar é o de uma senhora de idade dirigindo-se, de forma desafiadora, a soldados com idade para serem seus filhos – ou netos, talvez. Ela os critica. Diz que deveriam estar a favor do povo e não contra ele. Os soldados não respondem. Um deles a filma com o celular, para intimidá-la. Ela continua. Não tem medo. E, se tem, o domina. É uma longa sequência, símbolo do espírito de resistência civil a mais uma ditadura militar da antiga Birmânia.
Mas nem de longe é a cena mais dura. Estas se sucedem. Prisões arbitrárias, espancamentos, tiros, bombas jogadas contra a população. Pessoas arrancadas de suas casas por grupos de militares, aos gritos desesperados de familiares que não sabem para onde seus parentes serão levados.
A essas imagens cruas, alternam-se peças de ficção, porém ligadas de forma férrea à triste realidade do país. Uma menina sonha em ter uma tatuagem que evoca a beleza da transformação da larva na borboleta. Depois, uma voz comenta que ela nunca terá essa imagem impressa no corpo. Morreu em manifestação duramente reprimida? Em outra cena, uma garota acompanha o namorado que vai internar-se na selva para escapar da perseguição na cidade. E também para integrar um dos vários grupos guerrilheiros que enfrentam as forças do exército. Ela decide não contar a ele que está grávida.
As filmagens são feitas às escondidas. Quando descobrem que estão sendo gravados, os militares reagem de forma brutal. Mas, às vezes, é tarde demais. As imagens já passaram do celular para a nuvem e, desta, para o mundo. Assim são as guerras na época da internet, expostas aos olhos implacáveis dos celulares e das redes sociais. Logo essas imagens estarão no Facebook, no TikTok. Ou em um banco de dados para serem elaboradas e transformadas em filme. Como no caso destes Diários de Mianmar, obra sem autor, produto coletivo, testemunho deste nosso mundo que abriu a Caixa de Pandora, soltou os demônios e esqueceu lá dentro a esperança.
Diários de Mianmar: Bom
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