Crítica: 'Amante Duplo', de Francois Ozon, tem clima de mistério, à maneira de Alfred Hitchcock

Filme estreia no Brasil na programação do Festival Varilux

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Haja psicanálise para decodificar O Amante Duplo, o novo trabalho de François Ozon. Temos aqui uma personagem chamada Chloé, que sofre dores abdominais sem qualquer explicação médica.

Se vivesse no século 19, Chloé seria diagnosticada como histérica: somatiza sentimentos reprimidos. Quer dizer, faz seu corpo “falar” através da dor sem causa física aparente. 

Cena do filmeO Amante Duplo Foto: Califórnia Filmes

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Como boa histérica, Chloé (Marine Vacth) busca ajuda terapêutica no psicanalista Paul Meyer (Jérémie Renier). Num caso clássico de relação transferencial (outro must da teoria psicanalítica), os dois se apaixonam e então o tratamento tem fim – não se pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo, tratar e amar. Acontece que, por vias do acaso, Chloé descobre outro terapeuta, este de linha comportamental, Louis Delord, que é a cara de Meyer. 

Enfim, as relações em espelho se sucedem. Gêmeos, mórbida semelhança, Delord e Meyer se completam no par passividade-atividade, pelo menos dentro do imaginário de Chloé. E, a esta altura, o espectador começa a se perguntar se a história que está vendo e ouvindo tem pé na “realidade” ficcional ou se passa inteira, ou pelo menos em parte, na fantasia da personagem feminina. 

Essa ambiguidade de maneira ampla talvez seja a melhor característica do filme. Ozon, como de hábito, sabe criar um clima de mistério, de dubiedade, em que as coisas não são como parecem ser, embora o espectador sempre fique na dúvida a respeito. Há, nele, um toque de Hitchcock, uma espécie de artesanato da dúvida. A ambivalência dos personagens se expressa tanto por palavras e atos como, muito mais ainda, pelas imagens em que são contrapostos na tela. 

Por exemplo, a profusão de espelhos usados por Ozon indica essa polivalência das imagens que se multiplicam. Chloé é una ou múltipla? Sua personalidade se divide em várias ou existe nela um centro coerente, que dá sentido ao ser? São perguntas que ela se faz e também são endereçadas ao espectador.

Ao mesmo tempo, os gêmeos terapeutas são um o espelho do outro. Iguais, mas diferentes, um é imagem simétrica e invertida do outro. Um é bom, outro é maléfico; um passivo, outro agressivo. Mas qual deles é assim? Em sua brutalidade, seria Delord o mais verdadeiro? O mais cortês, Meyer, não seria mais falso? Essa duplicidade conquista Chloé pois talvez ela descubra que precisa dos dois, um como complemento do outro. 

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O encanto do filme consiste em convidar o espectador para esse jogo de labirintos, em que um beco sem saída conduz a outro, até o desfecho final. O Amante Duplo, está claro, desenvolve uma temática ampla, que desemboca na crise de identidade: quem sou e como os outros me veem? Para esse estado de indefinição entram como ingredientes a semelhança física dos personagens masculinos e também um certo caráter andrógino de Chloé. 

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