Crítica: Agnès Varda faz balanço lúcido e comovido em seu último filme

A diretora de 'Varda por Agnès' morreu em março, aos 90 anos, mas sua obra, que inclui clássicos como 'Cléo das 5 às 7' e 'Visages Villages', permanece; assista ao trailer

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Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
A diretora belga Agnès Varda Foto: Imovision

Há um clichê jornalístico de se referir sempre à última obra de um artista como “seu testamento”. Mesmo que jamais passasse pela cabeça do artista em questão que viria a morrer em seguida e que seu trabalho final fosse lido como um balanço de carreira e carta de intenções legada à posteridade.

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Tal não é o caso de Varda por Agnès, de fato o testamento da grande realizadora, morta pouco mais de um mês depois de apresentar a obra no Festival de Berlim. E, de fato, já na parte final do filme, ela nos lança, de maneira serena e seca um “Je vous quitte” (Eu agora deixo vocês), que nos desconcerta e emociona. Em Berlim, Agnès Varda, aos 90 anos, sabia ser portadora de um câncer em estado avançado, que não lhe deixava muito tempo pela frente. 

O filme é, assim, esse balanço lúcido e comovido de uma artista que sabia estar perto do fim da vida e que aquele era mesmo o ponto final de sua obra. Ela nos poupa, no entanto, de qualquer derramamento emocional, queixas ou pieguices que até seriam compreensíveis em tais circunstâncias. Sua principal preocupação, no entanto, é consolidar um legado. 

Tanto assim que a obra toma, de início, a forma de uma master class, em que a diretora se dirige à plateia para falar de sua trajetória. E, para começar a conversa, ela coloca os três pontos básicos que a norteiam: a inspiração, a criação, a partilha. Primeiro, o que a leva a tal ou qual tema ou assunto. Segundo, a reflexão e a ação sobre a forma que a obra vai tomar. Terceiro, como e com quem ela vai partilhar a obra, pois ninguém faz um filme para si mesmo; sempre supõe um destinatário e um diálogo. 

Tendo essa bússola a orientá-la, Agnès pode nos conduzir pelos meandros dessa obra longa, rica e multifacetada, que começa lá atrás, em 1955, com La Pointe Courte, e vem terminar agora, em 2019, justamente com esse extraordinário Varda por Agnès

Vale dizer que o longa não pretende dar explicações definitivas sobre este ou aquele filme. A última palavra (ou, melhor, a penúltima) será sempre daquele que fruir a obra, seja ele um crítico de cinema ou um espectador. O público é sempre a figura maior de todo o processo e por isso a humildade do artista deve ser a de jamais fechar um sentido que deve ser necessariamente aberto, polissêmico, sujeito a mais de uma interpretação. 

Não há certezas, mas enriquecimento da nossa percepção ao seguir os passos de Agnès, traçados por ela mesma. Das origens familiares à paixão de sempre pela fotografia; da descoberta de parentes espalhados pelo mundo (um em particular, o tio pintor que vive num barco na América) ao amor pelo marido Jacques Demy. Na companhia de quem foi “fazer a América” e lá conheceu os Panteras Negras, os hippies, os imigrantes cubanos e toda uma realidade que conhecia a distância. 

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Mas é na França que encontramos Agnès frente à sua grande paixão: o outro, a figura humana, sua compaixão pelo próximo. A ternura com que filma os tipos populares nesse curta extraordinário que é L’Opéra Mouffe, registro dos tipos populares da rue Mouffetard, no 5ème arrondissement, onde morava com Demy. Ternura com que acompanha figuras femininas em momentos-limite, como em sua ficção Cléo das 5 às 7, em que a cantora vivida por Corinne Marchand acredita-se condenada à morte por um câncer. Ou em Os Renegados (Sans Toi ni Loi), com a jovem Sandrine Bonnaire fazendo a mochileira que não acredita mais em nada ou ninguém, e vaga pelas estradas francesas, suja, sem dinheiro, sem literalmente ter onde cair morta. 

Agnès refere-se também aos seus trabalhos mais recentes, como o também retrospectivo As Praias de Agnès, de 2008. Neste, a diretora usava um recorte preciso – a presença litorânea em sua vida e em seus filmes. Mas, criativa, usava de outros recursos para incluir suas obras de “interior”, como a “praia” construída em plena rue Mouffetard e que exigiu o bloqueio da via para a filmagem. 

Inclui também seu trabalho conjunto com o fotógrafo JR em Visages Villages, registro precioso da França profunda, de seus vilarejos, seus habitantes e suas ruínas, como o bunker alemão abandonado na praia da Normandia, que ela adorna com a foto gigante de um amigo já morto, Ulisses.

Esse trabalho, registrado pela foto, tem a duração de um dia: não resiste à primeira maré, que recobre o bunker e lava a imagem. Mas resta a foto, fica o registro, permanece a obra. É a metáfora perfeita do que Agnès Varda tem a dizer nesse documentário sobre o efêmero e o eterno, um verdadeiro regalo ao espectador. 

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