Crítica: 'Acqua Movie' é um filme de estrada, que também discute questões indígenas

Acqua Movie fala de coisas sérias, mas não perde o humor, como era típico do ser brasileiro antes que as coisas desandassem e ficassem tão exasperadas por aqui

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Por Luiz Zanin Oricchio
3 min de leitura

Acqua Movie, do cineasta pernambucano Lírio Ferreira, ficou pronto em 2019 e só estreia agora. O atraso é consequência da pandemia, mas, como se verá, ele entra em cartaz em momento ainda mais oportuno. Com a devastação acelerada das florestas brasileiras e o cerco crescente aos povos indígenas, Acqua Movie pode ser considerado um filme da hora. Seus temas principais – meio ambiente e indígenas – são enlaçados pela questão primordial da nossa identidade e sobrevivência. Quem somos, de onde viemos, a quem somos aparentados? Qual país restará para viver depois de passada a catástrofe que ora nos assola?

Cena do filme 'Acqua Movie', de Lírio Ferreira, com Alessandra Negrini Foto: Fred Jordã

Acqua Movie não é um filme de tese, e nem sequer desesperado ou distópico, como se poderia supor, embora não sonegue imagens fortes ao espectador. Um exemplo é o leito morto de um rio, um cânion tanto belo quanto tétrico, filmado em plano-sequência. Põe em destaque o relacionamento entre uma mãe e um filho pré-adolescente. Duda (Alessandra Negrini) é uma ambientalista e documentarista que vive viajando para fazer seus filmes e não tem lá muito tempo para a família. O marido morre e o filho a convence a levar as cinzas do pai para seu lugar de origem, no Nordeste, onde ele teria manifestado desejo de ser enterrado.  Um road movie, portanto, marcando a longa viagem de carro entre São Paulo e o interior de Pernambuco, onde se encontra a cidade natal do pai. Ou melhor, onde se encontrava, já que foi alagada na transposição das águas do Rio São Francisco. Ao lado, outra cidade foi criada – a agora afluente Nova Rocha, comandada pelo irmão do pai, eleito prefeito.  Essa viagem serve também como uma espécie de rito de passagem para o garoto Cícero (Antonio Haddad). Ele é muito ligado à imagem do pai morto (Guilherme Weber), um jornalista de TV famoso. Hostiliza a mãe, sempre dedicada “aos seus índios”, relegando a família a segundo plano. Ao chegar à fazenda em Nova Rocha, se deixa seduzir pelo poder do tio, o sedutor e às vezes ameaçador Múcio (Arnaldo Madeira). E pela promessa de que herdaria, no futuro, tudo aquilo.  Há aí uma engenharia narrativa interessante. Passa pelo que poderíamos chamar de emancipação emocional de um garoto. O trabalho da mãe, em contato com indígenas, lhe parece abstrato e até egoísta. Quando ele mesmo conhecer a realidade, terá outra visão sobre a mãe e seus valores. É um processo de crescimento e reavaliação de perspectivas. Se passarmos para outro plano, mais geral, podemos imaginar o processo de amadurecimento do jovem Cícero como correspondendo a algo que falta à população brasileira em seu conjunto. Ou, pelo menos, a uma enorme parcela dessa população, que julga os recursos do planeta inesgotáveis, supõe que tudo pode ser destruído em nome do lucro e que povos originários não têm qualquer direito, são preguiçosos e devem ser mensurados em arrobas, como os quilombolas. Aqui, coloca-se em xeque não mais o contraste entre o Brasil moderno e o arcaico, mas o arcaísmo que se deseja passar por moderno.  Essas inquietações críticas não tomam a forma de teses. Deslizam pela narrativa, de modo natural e nada impositivo. Há uma posição do autor e esta é clara e visível. Mas nem por isso adota o tom professoral de “mensagem” ou de ordenação moral. Lê nas entrelinhas quem quiser. Ou puder. Caso contrário, fique apenas com uma história muito bem contada.  Mesmo porque Lírio é o que chamamos de “bicho de cinema”. Alguém capaz de articular em imagens toda a estrutura narrativa, dispensando muletas discursivas inúteis. O filme é todo cheio de ritmo (montagem de Vânia Debs) e muito bem fotografado (Gustavo Habda). Gostoso de ver.  Quem conhece o trabalho anterior do cineasta sabe do seu amor pelo cinema e conhece esse estilo cheio de bossa. Lírio é coautor, com Paulo Caldas, de Baile Perfumado (1997), um dos filmes decisivos da Retomada, vencedor do Festival de Brasília. Em direção solo, fez a ficção Sangue Azul (2014), rodada em Fernando de Noronha, e assina os notáveis documentários musicais Cartola (2007) e O Homem que Engarrafava Nuvens (sobre Humberto Teixeira, de 2009). Acqua Movie é continuação e contraponto de seu Árido Movie, de 2004.  Trabalho de cinéfilo, Acqua Movie é pontuado de homenagens e referências internas. Estrelado por uma paulistana (Negrini), traz em pequenos porém marcantes papéis atrizes emblemáticas do Nordeste, como Marcélia Cartaxo e Zezita Matos. Dois diretores da região fazem pontas. Uma, um pouquinho maior, com direito a fala, do diretor baiano Edgard Navarro, como dono de um boteco ribeirinho. Outra, apenas de passagem, com o cineasta pernambucano Cláudio Assis, como o governador do Estado presente ao enterro fake do ilustre filho da cidade de Rocha. Acqua Movie fala de coisas sérias, mas não perde o humor, como era típico do ser brasileiro antes que as coisas desandassem e ficassem tão exasperadas por aqui. Numa passagem da história, há um diálogo hilário entre o coronel-prefeito e seu jagunço a propósito do Bolero, de Ravel. Puro nonsense, à la irmãos Marx. O cinema de Lírio é líquido e certo. 

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