Crepúsculo de paixões, por Alain Guiraudie

‘Um Estranho no Lago’ reinventa Bataille e usa a luz para criar conto gótico que estabelece a arte de um grande autor

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Alain Guiraudie nunca fez segredo de sua homossexualidade, mas, como ele diz, “nunca havia antes experimentado o desafio nem a necessidade de representar sua condição na tela”. E aí surgiu Um Estranho no Lago, seu longa que integrou a seleção oficial de Cannes neste ano – na mostra Un Certain Regard – e foi premiado pelo júri presidido por Thomas Vinterberg. Para muita gente, incluindo o repórter, Um Estranho foi o melhor filme de Cannes neste ano, todas as seções confundidas. E o acaso faz agora com que estreiem no mesmo dia os dois melhores da seleção cannoise – o outro é Um Toque de Pecado, de Jia Zhang-ke. Somam-se ao terceiro grande, o que venceu a Palma de Ouro – Azul É a Cor Mais Quente, de Abdellatif Kechiche. Só falta estrear, no dia 27, São Silvestre, de Lina Chamie, para completar a lista dos mais de 2013. Hilda Santiago, diretora artística do Festival do Rio, integrava o júri da mostra Um Certo Olhar. Ela não apenas trouxe Um Estranho e Guiraudie ao Brasil como promoveu uma retrospectiva do diretor. Jean-Thomas Bernardini, da distribuidora Imovision, bem deveria ter comprado os direitos de outro filme de Guiraudie, Le Roi de L’Evasion, que passou em Cannes, 2009, integrando a Quinzena dos Realizadores. No Rio, em conversa com o repórter, Guiraudie confessou-se lisonjeado com a definição de autor de grandes filmes. E brincou – “Mas pequenos públicos”. Seus filmes, incluindo O Rei da Evasão, fizeram a média de 30 mil espectadores, e num país de cinéfilos como a França. Só com Um Estranho ele ultrapassou a marca dos 100 mil. O curioso é que Guiraudie foi homenageado por um festival na Coreia e descobriu que lá, do outro lado do mundo, tem um público entusiasta. No Rei da Evasão, ele filmou a primeira cena de sexo de sua carreira – entre um gay de 40 anos e uma garota, uma adolescente. “Era a minha utopia sexual”, ele resume. Com Um Estranho, desistiu de toda fantasia. Não quis ‘rigoler’, o que se poderia definir como ‘gracejar’. “Parti de uma realidade documentária que conheço, mas nunca quis fazer um filme ‘gay’. Existem filmes heteros que pretendem ser alegorias homo. Eu conto uma história que se passa num meio homo para refletir um momento da vida social.” Sua maior referência foi Georges Bataille. Desejo, erotismo e morte. “O desejo não passa só pela linguagem do corpo, passa pela palavra, o verbo”, ele reflete. Poderia ser, apesar de todas as diferenças, Abdellatif Kechiche falando. “Meu interesse sempre foi retratar a situação limite. Como se pode estar sozinho, mesmo em grupo.” Os personagens de Um Estranho frequentam uma praia, num lago, onde homossexuais se reúnem para ‘caçar’. O sexo corre solto. “O diretor que mais me interessa é Bruno Dumont, mas me incomoda sua representação do sexo como pornografia, a forma como ele filma a penetração. Não era o que queria.” Um Estranho é um pouco um conto gótico, ou um suspense hitchcockiano. Um dos frequentadores da praia, Franck, se interessa por outro, Michel, mas descobre que ele é um serial killer que está matando gays. Há um terceiro personagem, Henri, que se mantém um tanto distante. E um quarto, o policial que faz investigações. Franck é cool, mas brinca perigosamente com Michel. Esse último é o predador. Seguro do seu poder de sedução, exerce a sexualidade e, satisfeito, elimina o objeto de desejo. “Fiz o filme para discutir o sexo como consumo. Falo do mundo gay, mas isso ocorre também entre heteros. A morte pode ser metafórica, não precisa ser real.” Três personagens, três elementos – o lago, que reflete o céu; o mato, símbolo do interdito, onde se esconde o perigo; e o crepúsculo que avança. O espaço tríplice, mas unitário – o lago, o mato, o estacionamento. E o vento, que também vira personagem. Filmes como Um Estranho e Azul subvertem normas. São belos, de uma beleza soturna, que faz pensar. UM ESTRANHO NO LAGOTítulo original: L’Inconnu Du Lac. Direção: Alain Guiraudie. Gênero: Drama (França/2013, 100 minutos). Classificação: 18 anos. 

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