‘Compra-me Um Revólver’, um filme sobre a violência no México com ares de Mark Twain

O longa ‘Compra-me Um Revólver’ discute a marginalidade da mulher

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Conto moral moderno e violento, Compra-Me Um Revólver passa-se num México distópico, presumivelmente futurista, em que a população diminuiu porque as mulheres estão desaparecendo. Nesse quadro, o tráfico viceja, os homens tornam-se bestas que disputam as raras fêmeas. O cenário é de desolação, nenhuma cidade, mas um estádio semi-abandonado que o pai da protagonista mantém ativo em troca de droga que lhe oferece o chefe de um dos cartéis. O futuro não poderia ser mais contemporâneo, um espelho deformante da realidade, com um toque de fantasia.

Garotos aprendem a se disfarçar para roubar traficantes em 'Compra-me um Revólver' Foto: Burning Blue/Woo Films

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Desde a sua apresentação no Festival de Cannes do ano passado, integrando a seleção da Quinzena dos Realizadores, o longa de Julio Hernandez Cordón tem dividido a crítica. Está longe de ser uma unanimidade, mas é forte e procura retirar beleza e poesia de um mundo sórdido e cruel. Em Cannes, Cordón afirmou o que vem repetindo como um bordão – seu filme dá voz aos que não podem pedir ajuda a seus governos. O pai é fraco, mas ama sinceramente a filha e tenta, de todas as formas, protegê-la. Para disfarçar seu gênero, Huck faz-se passar por menino, usa máscara. Tem amigos – meninos – que vivem entregues a eles mesmos, selvagens, integrados à natureza. Para se acercar, e roubar, dos campos de traficantes, cobrem-se de arbustos. São astutos, os meninos-arbustos, mas não deixam de ser crianças em seus folguedos, por mais que reproduzam o mundo adulto.

Esse é o quadro geral, que Cordón vai particularizando para chegar a um desfecho bem específico. A partir de agora, os spoilers são inevitáveis. Huck não carrega esse nome por acaso. Outro personagem chama-se Finn. Huckleberry Finn evoca imediatamente as aventuras do amigo de Tom Sawyer, a quem o escritor Mark Twain dedicou um volume próprio, quase sempre considerado sua obra-prima. Huck e seu amigo Jim, escravo fugitivo, sobem o rio Mississippi numa balsa. Defrontam-se com o horror da sociedade escravagista, que o escritor denuncia com veemência – como Cordón faz com os cartéis, que se fundamentam numa estrutura vertical que nega qualquer valor à vida humana. Quando Huck se recusa a fazer o que lhe pede o pai, e exige uma paga, ele retruca que não pode pagar. E acrescenta: “Sou escravo”.

Na ficção de Twain, a extraordinária aventura de Huck, que fará dele um homem, será sempre no sentido de proteger Jim.

Embora o pai se considere um gato de sete vidas, Huck está sempre a protegê-lo, como protege os meninos-arbustos, especialmente o mais fragilizado entre eles, o que perdeu o braço, decepado por El Jefe, o chefe. Não se sabe bem a razão, o chefe conserva o braço arrancado, que Huck vai devolver ao amigo. Numa trama de muita violência, e assassinatos brutais, Huck vai descobrir (e nos expor) o segredo mais íntimo do chefe, que ela chega a suspeitar que, nesse mundo de homens cruéis, seja uma mulher. Interessante como, na sua rendição de Twain, Cordón faz essa mudança tão decisiva, transformando o menino em menina. Se As Aventuras de Huckleberry Finn é um conto clássico de amadurecimento – coming of age –, a Huck de Cordón faz outra trajetória – para se converter numa chefona? A fábula futurista alicerça-se sobre os movimentos de afirmação da mulher no mundo atual.

Matilde Hernandez, que faz Huck, é muito expressiva. E Cordón é um cineasta norte-americano de ascendência hispânica, nascido na Carolina do Norte há 44 anos. Antes de provocar sensação em festivais com Compra-me Um Revólver, fez-se notar com As Marimbas do Inferno, rodado na Guatemala, sobre roqueiro e músico tradicional que se nutrem de ritmos caribenhos em suas pesquisas. Dirigiu também Gasolina, Polvo e Te Prometo Anarquia, todos muito provocativos.

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