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Comédia de costumes retrata a Índia globalizada

"Casamento à Indiana", da cineasta Mira Nair, filme vencedor do último Festival de Veneza, não veio para discutir problemas, mas para confraternizar

Por Agencia Estado
Atualização:

Francis Ford Coppola começa "O Poderoso Chefão" por um casamento. Thomas Vinterberg chama seu corrosivo retrato da sociedade contemporânea de "Festa de Família". Grandes reuniões são ótimos pretextos para retratos sociais. Pessoas que estão distantes se reúnem, gerações se encontram, o álcool relaxa as inibições, comemora-se, bons sentimentos vêm à tona, junto com os conflitos. Mira Nair resolveu usar o mesmo recurso para retratar a moderna sociedade indiana, segundo sua ótica pessoal. Deu certo: este simpático "Um Casamento à Indiana" (Monsoon Wedding) acabou ganhando o Festival de Veneza do ano passado. Beneficiou-se de uma seleção fraca, saiu com o troféu principal, e tem lá seus méritos. O filme, que estréia amanhã (24), em São Paulo, traduz a volta ao lar da cineasta, que enfrentou uma queda-de-braço com a censura local para a liberação sem cortes do nem tão erótico "Kama Sutra"(1996) ? batalha que ela perdeu. Uma grande festa, no centro da trama de "Um Casamento à Indiana", reúne em Nova Délhi dezenas de parentes, espalhados nos quatro cantos do mundo ? EUA, Austrália, sem contar diversas regiões da própria Índia. Nos diálogos, misturam-se naturalmente o hindi, dialetos regionais e o inglês ? algo que a diretora garante que é muito comum no cotidiano em seu país. Mira pretende mostrar uma sociedade problemática como a indiana sem nenhum sentido de miserabilismo. Pelo contrário - deseja uma exaltação de nacionalidade. Em suas entrevistas, a diretora de filmes como "Mississipi Masala" e "Kama Sutra", costuma dizer que quer transmitir uma visão positiva da Índia: "Estamos na moda, somos um povo multicultural por excelência", diz. Mulher global, vive nos Estados Unidos e vai filmar em Hollywood. São informações extracinematográficas que podem ter algum interesse, embora os puristas do "específico fílmico" desprezem tudo o que não esteja impresso no celulóide. Seja. O que vem gravado na película de fato fala por si. A história do filme é a de um casamento de encomenda, como ainda se usa na Índia. Ou seja, noiva e noivo não se conhecem. Ele vem dos Estados Unidos; ela mantém um caso não resolvido com um colega de trabalho. Para a cerimônia, chegam parentes da América e da Austrália. Tudo é uma grande confusão. O pai toma dinheiro emprestado para a grande festa ao ar livre. Um organizador de festas trambiqueiro ronda a família e acaba se apaixonando pela empregada da casa. O ambiente social focalizado seria o equivalente talvez de uma classe média alta, em geral folgada, mas que tem de suar sangue para promover uma festa suntuosa para a filha. Enfim, Mira Nair monta seu circo com intenção bastante clara. Deseja fazer um corte transversal da sociedade indiana, mas de certo patamar social para cima, é claro. Não está interessada em mostrar pobreza ("Somos um país na moda", etc.) castas, classes sociais inassimiláveis, impasses, nada disso. Tudo, na organização ficcional, deve confluir para o congraçamento final, incluindo nele o romance de um subalterno (o organizador da cerimônia) com outra subalterna, a empregada da casa. Os conflitos são de ordem pessoal. Há um caso de pedofilia mal assimilado na família e que se revelará no terço final do filme. A noiva não está bem convencida do destino que deve dar à sua vida e divide-se entre o noivo arranjado, que acha bem atraente, e o desejo pelo antigo namorado, um tipo soturno, casado, cujo mérito sexual vem implícito na hesitação da moça. São problemas que se resolvem no interior da trama e não empanam a busca de harmonia proposta pela diretora. Uma harmonia bastante caótica, em que pese a contradição pois afinal, mesmo edulcorada, a Índia não é para principiantes. Tal como o Brasil, contém sempre alguma coisa de selvageria, de criativa bagunça, em seu caldo cultural. E é quando contempla essa bagunça organizada que o filme ganha maior interesse, por exemplo nas cenas de rua, quando as mulheres da família vão às compras e mostram-se inteiramente à vontade no caos urbano de Nova Délhi. Mira Nair acerta também nas seqüências internas, quando um dado universal, a cumplicidade feminina, cria um clima intimista e confessional, que diz muito sobre elas, mas também sobre o tipo de sociedade onde vivem. Esse tipo de arranjo ficcional, com a câmera passeando por poucos ambientes, mas por muitos personagens, soa verdadeiro. Não foi feito para iludir ninguém. Mas o conjunto do filme não parece tão autêntico quanto algumas de suas partes. Não há como negar o encanto, mas também a parcialidade como é retratada essa Índia diet de Mira Nair. Nesse caso, o filme vale mesmo como excelente exemplo de cultura globalizada, uma espécie de world cinema, em que culturas se mesclam e se abraçam amistosas, sem nunca se contradizerem, ao preço, claro, de aplainar arestas mais incômodas. O imbróglio lingüístico proposto é um exemplo, talvez o mais inócuo, dessa disposição eclética: o punjabi se alterna o tempo todo com o inglês - e às vezes numa mesma frase, num mesmo diálogo. Há uma solitária alusão, logo no início do filme, à hipótese de que a cultura local poderia estar sendo descaracterizada, mas o filão é abandonado em seguida. Compreensivelmente, pois "Um Casamento à Indiana" não veio ao mundo para problematizar. Sua vocação é o congraçamento. De nações, de classes, talvez de castas. Não espere saber muito sobre a Índia profunda vendo este filme. Para isso, recomenda-se a obra de um conterrâneo de Mira Nair, Satyajit Ray, artista feito de outro barro. Serviço - Um Casamento à Indiana (Monsoon Wedding). Comédia. Direção de Mira Nair. Índia/2001 Duração: 114 minutos. 12 anos

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