Com ‘Fogaréu’, Flávia Neves mergulha nas entranhas de Goiás

Filme ficou em terceiro lugar entre os favoritos do público da seção Panorama do Festival de Berlim 

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Por Mariane Morisawa
Atualização:

Flávia Neves nasceu e foi criada em Goiânia, mas só quando estava estudando na Universidade Federal Fluminense, ao ser interpelada por um professor, pensou na questão da adoção de meninas em situação de vulnerabilidade para trabalhar em casas de família, tão comuns de onde ela veio. 

A história nunca mais saiu da sua cabeça, e Flávia Neves resolveu fazer um filme sobre isso. Seu longa-metragem de estreia, Fogaréu, ficou em terceiro lugar na votação do público da mostra Panorama, em Berlim, depois do cazaque Happiness, de Askar Uzabayev, e Klondike, uma coprodução entre Ucrânia e Turquia dirigida por Maryna Er Gorbach. Os prêmios foram anunciados na manhã deste sábado, 19. O festival termina amanhã na capital alemã. 

A atriz Bárbara Colen em cena do filme 'Fogaréu', de Flávia Neves Foto: Bananeira Filmes

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Ao longo do processo de feitura do filme, Neves percebeu que aquela história tinha mais a ver com ela do que havia imaginado. “Minha mãe também foi adotada para trabalhar na casa de uma dessas famílias”, disse a diretora em entrevista ao Estadão, por telefone. “E aí tinha todo esse discurso de afeto, de ser como filho, de ‘estou salvando sua vida, te tirando da miséria’. É muito cruel porque você passa o tempo todo acreditando que aquelas pessoas salvaram sua vida quando na verdade elas estavam explorando.”

No filme, Fernanda (Bárbara Colen) volta a Goiás Velho, anos depois de sua mãe adotiva levá-la dali. Ela chega na chamada Noite das Trevas, a madrugada da Quinta-Feira Santa, quando acontece a Procissão do Fogaréu, em que pessoas de batas compridas e chapéus pontudos, representando os algozes de Cristo, desfilam carregando tochas. A tradição tem sua origem na Península Ibérica da Idade Média, e as vestimentas são idênticas às adotadas pela Ku Klux Klan. É essa a imagem de impacto que abre o filme. “Logo de início você tem o tom do filme, de estar entrando em outra temporalidade”, explicou a cineasta. Ali também está representada a jornada de Fernanda, que será perseguida ao buscar a verdade da família chefiada por seu tio Antônio (Eucir de Souza).

A protagonista quer saber quem são seus pais biológicos. Em sua procura, ela vai topar com uma herança de pessoas neurodiversas sendo “adotadas” para trabalho doméstico, casamentos consanguíneos, abusos físicos, mulheres coniventes e homens violentos, ameaças às terras indígenas e destruição do cerrado pelo agronegócio. “É uma cultura quase da Idade Média, em que você estabelece essas relações de servidão. Há esse caráter de exploração e de tirar o máximo do lugar, que é característica da colonização. O processo colonizatório está acontecendo ainda, em relação aos povos indígenas, que resistem bravamente nessa região.”

Fogaréu se insere em uma leva de filmes brasileiros que finalmente coloca em foco o Centro-Oeste, uma região de importância econômica e política enormes, caso dos filmes de Adirley Queirós, que apresentou Mato Seco em Chamas em Berlim, Madalena, de Madiano Marcheti, e Vento Seco, de Daniel Nolasco. “Lá, o dinheiro rege tudo. É onde tem proporcionalmente mais Ferraris. E as pessoas não sabem disso, porque não tem ninguém representando esse lugar.”

Foi por isso mesmo que a cineasta quis fazer Fogaréu, indo fundo, sem medo, na exploração das relações familiares e de trabalho tóxicas, na violência e no machismo, que ela sofreu na pele, quando ainda morava em Goiânia e ao voltar como cineasta. “Quando a gente vem de uma classe social que nunca teve a chance de fazer um filme, a gente não vai perder a chance de falar. Sempre foi um risco. Mas é a chance que eu tenho, não sei se vou ter outra. Talvez seja a primeira cineasta mulher de Goiás a fazer um filme de ficção com orçamento.” 

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Neves teve momentos de conflito ao lidar com questões tão pesadas e tão próximas de sua história. “Pensei: ‘Caramba, é isso que tenho para dar para o mundo? Nesse tom? É isso que tem dentro de mim? Você quer mostrar esse lado sombrio?’. Mas o impulso nunca foi outro. Fui entendendo e me acostumando com isso. É um filme difícil de carregar. Filmar nesse lugar, com toda essa energia, foi duro, mas era o que tinha de falar.”

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