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Clássico francês mostra a guerra sem maniqueísmo

A Grande Ilusão, filme de 1937 de Jean Renoir, reestréia em cópia nova

Por Agencia Estado
Atualização:

Você reconhece um grande filme quando sente que ele é antigo e ao mesmo tempo eterno. A Grande Ilusão, de Jean Renoir, é de 1937. Seu enredo é situado durante a 1.ª Guerra Mundial (1914-1918), e não por acaso lançado às vésperas da 2.ª Guerra, que começaria dois anos depois. Ou seja, Renoir incorporava a experiência trágica dos anos anteriores, antevendo a desgraça que seria o recrudescimento das hostilidades com a Alemanha. Um manifesto pacifista? Sim, mas não só. Como toda obra de arte, A Grande Ilusão é feita de nuances, de pontos misteriosos, de elementos contraditórios. A ação se passa num campo de prisioneiros na fronteira franco-alemã. Os soldados pertencem a classes sociais diferentes em tese igualadas pelos uniformes e pela condição de prisioneiros dos alemães. Mas Renoir é maduro demais para acreditar nisso. Jean Gabin é o tenente Maréchal e representa o francês típico, médio, com seu bom senso e patriotismo. Pierre Fresnay é o capitão Boeldieu, um aristocrata; Marcel Dalio é Rosenthal, combatente judeu. São recebidos pelo comandante do campo, o capitão Von Rauffenstein, interpretado pelo ator e cineasta Erich von Stroheim. Há todo um jogo sutil de pares, que aproxima Rauffenstein de Boeldieu, e Rosenthal de Maréchal. Há um momento em que o alemão diz para o francês que não sabe quem ganhará a guerra, mas sabe que será o fim da classe social a que pertencem. Talvez parecesse assim mesmo na época. Como se admite hoje, o século 19 termina, de fato, em 1914, com o surgimento da barbárie em escala nunca vista. A civilização européia, que se julgava tivesse atingido o ápice na belle époque terminava de maneira inglória nas trincheiras, na lama, nos mortos e nas pernas amputadas. Disso falava Rauffenstein, ainda que sua casta aristocrática estivesse longe da extinção completa, como ele temia. Mas o que terminava de fato para a aristocracia européia era o verniz de finesse, de cosmopolitismo, de punhos de renda e boas maneiras. O mundo que sairia dali não aboliria as diferenças de classe, mas sim as sutilezas do salão. Ao invés de salamaleques, extrato bancário. Violência sem disfarce, na brutalidade de um mundo competitivo. O filme fala disso e indica algo mais: que a solidariedade de classes entre os dois aristocratas tem peso considerável, embora os homens sirvam a países rivais. Enquanto Rauffenstein e Boeldieu falam sobre a guerra e o declínio da aristocracia, como se falassem amenidades em um salão da sociedade, a classe baixa, pragmática, cava um túnel para fugir, voltar para a França e depois ao combate. Maréchal, Rosenthal e seus companheiros só pensam em escapar. E conseguirão, por fim, mas então o que se verá nada tem de encantador. Enfrentam a fome, a neve, os pés feridos, o desânimo. Numa das cenas mais tocantes, Maréchal insulta Rosenthal, pois este torceu o pé e não consegue caminhar. Depois se reconciliam porque - aqui também - o sentimento de companheirismo se impõe. Quando lançado, o filme foi muito mal recebido pelas autoridades francesas e percebe-se a razão. Há nele, de um ponto a outro, uma tese de negação sistemática do maniqueísmo. Nem os franceses são santos nem os alemães monstros. Uns e outros estão presos a uma engrenagem - a guerra - que torna a todos cúmplices e, sobretudo, vítimas. Quando vê os jovens soldados alemães passando, Maréchal comenta que a guerra transforma crianças em soldados e soldados em crianças. A frase ficou famosa, como outras do filme. Quando estão tentando atravessar a fronteira da Suíça, e assim escapar à perseguição dos alemães, um deles comenta: a neve é igual dos dois lados, a fronteira é apenas uma invenção dos homens; a natureza não dá a mínima para isso (la nature s´en fout). O filme progride assim por grandes quadros e por aforismos. Há a seqüência no primeiro campo de prisioneiros, a tentativa de fuga, a transferência dos soldados para um castelo fortificado, a morte de um dos oficiais e depois a tentativa de Maréchal e Rosenthal de atravessar a fronteira. Pedem abrigo numa casa e Maréchal se apaixona pela mulher, uma viúva, que perdera o marido na guerra. Às autoridades francesas, à véspera de um novo enfrentamento com o vizinho, soava absurdo que uma mulher alemã parecesse tão meiga e frágil quanto aquela. A gente do povo aparece em sua generosa dimensão, mas nem por isso a aristocracia se transforma em caricatura. Claro, há a rigidez do personagem de Stroheim que, sob pretexto de um ferimento em batalha, move-se como um robô. Mas é um personagem triste, que se sabe em via de desaparição, como indivíduo e como classe. E é impossível não se comover com o seu pedido de perdão por ter ferido um ser que sentia como socialmente semelhante. Enfim, não há super-heróis nem mocinhos ou bandidos nesse grande e sereno universo construído por Jean Renoir. Tudo, nele, é apenas humano, demasiado humano. Humanidade que lhe confere status de obra-prima. A Grande Ilusão (La Grand Illusion). Drama. Direção de Jean Renoir. Fr/37. Duração: 113 minutos.12 anos.

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