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Clássico do nacionalismo sai em DVD

Por Agencia Estado
Atualização:

Um filme cívico feito com a marca do gênio - uma definição possível para O Descobrimento do Brasil, clássico de Humberto Mauro realizado sob a égide do Estado Novo e na linha estrita do pensamento nacionalista. Nesse documentário ficcionado, cuja cópia restaurada é lançada em DVD pela Funarte, vê-se tanto a visão apaziguada do grau zero de uma nação quanto o "estilo Mauro de filmar". Mauro, considerado por Gláuber Rocha como o pai de todos, o iniciador de uma maneira autenticamente brasileira de fazer cinema. O roteiro segue à risca a descrição do descobrimento feita por Pero Vaz Caminha em sua carta. Quer dizer, uma visão oficial, realizada com todos os cuidados artesanais disponíveis na época. O espectador moderno vai encarar com desdém os barquinhos toscos que simulam a frota de caravelas e outros detalhes. Mas é preciso colocar as coisas em perspectiva e avaliar o esforço de produção empreendido por Mauro e equipe naquela época. Em contrapartida, há as cenas belíssimas, como as da Primeira Missa, que reproduzem a tela clássica de Pedro Américo. E há também a sofisticada trilha musical, composta por Heitor Villa-Lobos sob encomenda de Mauro. Apesar de todo esse esforço, o filme não teve boa acolhida de público e crítica, nem no Brasil nem em Portugal, onde também foi lançado. Isso, apesar de a estréia ter sido acompanhada de campanha intensa, sessões privés para autoridades etc. Mesmo no ambiente nacionalista da época, pegou mal a visão edulcorada do encontro entre colonizadores portugueses e índios. Mal se vêem as índias, o que se compreende. Dados os padrões morais daquele tempo, as beldades nativas não podiam aparecer no filme mostrando suas vergonhas. Dois índios concentram em si a dinâmica desse encontro. Acompanham os portugueses à nau capitânea, dormem a bordo e são tratados com todo carinho. Ficou famoso o texto de Graciliano Ramos sobre o filme e esse detalhe em particular. Naquela que é provavelmente a sua única crítica de cinema, Graciliano começa por elogiar a produção. Diz que O Descobrimento do Brasil é bem realizado, uma exceção às "coisas chochas" que o cinema brasileiro costuma produzir: "Trabalho sério, trabalho decente: a carta de Pero Vaz reproduzida em figuras, com admiráveis cenas, especialmente as que exibem multidão. Aí estão os fidalgos cobertos de veludo e de seda, a maruja descalça, a nau perdida" etc. E, no entanto, prossegue Graciliano, "Os estrangeiros se extasiam na presença dos hóspedes beiçudos e pintados que jogam fora a comida e cospem a bebida. São uns santos os portugueses, têm uma expressão de beatitude que destoa das façanhas que andaram praticando em terras da África e da Ásia e por fim neste hemisfério. É o próprio almirante que põe cobertores em cima dos selvagens e lhes arruma travesseiros com uma solicitude, uma delicadeza de mãe carinhosa". Quer dizer, não escapava ao escritor o caráter ideológico de um filme que procurava conciliar o País com sua própria história. Sua realização já se dá num quadro em que Mauro passava a se dedicar ao cinema educativo. O cinema como função civilizatória, a arte moderna capaz de levar cultura e educação a um povo afundado nas trevas da ignorância. Era um ideal de governo, um projeto nacionalista e que seduziu nomes como Villa-Lobos, Gustavo Capanema e o próprio Mauro. O limite desse tipo de iniciativa é que nela não cabe a contradição. Graciliano, formado no pensamento dialético, não ia deixar de chutar essa bola redonda que passou pingando diante dele. Essas observações em nada diminuem a importância do filme e muito menos a de Humberto Mauro, o grande precursor do Cinema Novo, em declaração de Gláuber Rocha. Aliás, esse depoimento de Gláuber faz parte do belo curta-metragem Mauro, Humberto, de Davi Neves, que vem como extra do DVD. O Descobrimento do Brasil. Brasil, 1937. Direção de Humberto Mauro. DVD lançado pela Funarte, tel. (21) 580-3631.

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