Clássico do Dia: Woody Allen fantasia sobre Mia Farrow em 'Hannah e Suas Irmãs'

Diretor se mostra bem mais sofisticado do que em sua recente autobiografia, 'Apropos of Nothing'

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Em sua autobiografia lançada nos EUA, Apropos of Nothing/A Propósito de Nada, Woody Allen diz que entende a reação da ex-mulher, mas busca no histórico familiar de Mia Farrow os motivos do seu destempero. Está no DNA, parentes loucos de internar. Chega a dizer que Mia adotou todas aquelas crianças, mas nunca foi mãe de verdade. Era só fachada, para bancar a mártir. E Allen conclui que, aos 80 anos, chegando ao fim da vida, está-se lixando para o que pensam os outros – se será lembrado como um artista ou como um velho pedófilo devasso. Baixaria total. Bem diferente do tempo em que Allen fez com Mia os melhores filmes de sua carreira, e o que talvez tenha sido o melhor de todos.

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Ele recebeu os Oscars de melhor filme, direção e roteiro (com Marshall Brickman) de 1977, mais o de melhor atriz (Diane Keaton), por Annie Hall/Noivo Nervoso, Noiva Neurótica, mas suas obras mais influentes foram Zelig e A Rosa Púrpura do Cairo, de 1983 e 85, com Mia. A técnica, a par da inteligência da escrita e da direção, é prodigiosa nesses filmes, e sem Zelig talvez não houvesse Forrest Gump – O Contador de Histórias, de Robert Zemeckis, que venceu o Oscar de 1994, assim como A Rosa Púrpura foi decisivo para o surgimento de O Último Herói de Ação, de John McTiernan, no ano anterior.

Em 1986, a afirmação poderá provocar pólêmica, Allen fez o maior de seus filmes, Hannah e Suas Irmãs – a crônica sobre uma família e uma fantasia sobre Mia. Como assim? Paulo Francis, num de seus Diários da Corte – seria interessantíssimo, se estivesse vivo, vê-lo analisar os EUA de Donald Trump e o Brasil de Jair Bolsonaro -, escreveu exatamente isso. A personagem de Mia, formatada para a atriz, representa um ideal. É moralmente tão perfeita que nem parece humana. É compassiva, inteligente, generosa, bonita. Psicanaliticamente, pode-se supor que Allen colocou Mia num altar e depois não soube mais como lidar com isso. Virou o tal velho devasso, iniciando uma relação com a filha adotiva. Ah, sim, a filha adotiva não era dele, era só dela, de um casamento anterior (com o compositor André Previn). Sempre foi a justificativa dele.

Quando Hannah e Suas Irmãs passou - fora de competição - no Festival de Cannes, Michael Caine, meio de brincadeira, meio falando a verdade, disse que fazia um Woody Allen mais alto no filme. E se o espectador prestar atenção poderá reparar no jeito tímido, um tanto atrapalhado, na maneira como o personagem tropeça nas palavras quando nervoso, e – claro – os óculos. Diversas vezes, ao longo de sua carreira, quando não se colocava frente à própria câmera, ele se projetava em algum ator, que fazia o seu papel.

Diretor se mostra bem mais sofisticado do que em sua recente autobiografia, 'Apropos of Nothing' Foto: TOWER RECORDS

São dois os Woody Allens em Hannah – o original e a cópia mais alta. Em Cannes, o autor explicou que o coração é um músculo pequeninho, mas muito complicado. E acrescentou que ele tem uma capacidade de recuperação muito maior do que a gente pensa, por isso, por mais devastadoras que pareçam, as dores de amores são passageiras. O próprio cinema ajuda, e o Woody Allen da ficção readquire a alegria de viver assistindo a um dos filmes mais engraçados com os Irmãos Marx, O Diabo a Quatro, de Leo McCarey, de 1933. Na autobiografia, ele conta que sua grande referência de humor foi Bob Hope, mas, como autor, sempre teve o pé na cultura européia. Ama Ingmar Bergman, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, os mestres da literatura russa. Leon Tolstoi inspirou não apenas Love and Death/A Última Noite de Boris Grushenko, mas também Hannah e Suas Irmãs, cuja origem, segundo o diretor, está em Anna Karenina.

Poderia dizer também que está em Eric Rohmer, o elegante cineasta francês dos Contos Morais e da série Comédias e Provérbios. Entre os muitos filmes que Rohmer dedicou ao casal está L'Amour l'Apres-Midi/Amor à Tarde, de 1972. Um dos capítulos de Hannah chama-se também Afternoons, Tardes. Rapidamente – Hannah/Mia tem no filme duas irmãs. Seu ex-marido apaixona-se por uma delas e o atual tem um affair com a outra. Michael Caine encontra Barbara Hershey num hotel sofisticasdo. Passam as tardes se amando, e dançando aquelas trilhas refinadas de que o diretor gosta tanto. Allen seguiu fazendo grandes filmes, inclusive e principalmente com Mia Farrow, antes da ruptura traumática, marcada por acusações de abuso e pedofilia. Outro dos maiores é Crimes e Pecados, o seu Crime e Castigo, de 1989. O médico oftalmologista que não tem olhar para a miséria humana e o cego que é o único a ver o que ninguém quer enxergar.

Na épooca, há 30 anos (ou mais), tudo parecia só ficção. Com o distanciasmento, pode-se divagar um pouco e ver que, talvez, Woody Allen estivesse o tempo todo falando dele. Manhattan, de 1979, com o suntuoso preto e branco da fotografia de Gordon Willis e aquela trilha de Gershwin, é sobre um escritor de meia-idade apaixonado por uma ninfeta de 17 anos. Abandonado peela mulher, que se assumiui como lésbica, ele conta os podres dela num livro. Hannah tem entre seus personagens esse homem que trai a mulher com a irmã dela. Há muito ele já vinha expondo o lado mais sombrio dos relacionamentos. Allen diz que não se importa com o que será dito sobre ele após a morte. O autor amado, incensado, virou um monstro, mas poucas obras no cinema contemporâneo colocam um problema tão urgente e visceral.

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Deve-se avaliar a obra pelo artista? A excelência do artista pela miséria do homem? Allen, o artista, já sinalizava aonde o homem poderia chegar, mas ninguém via. Era tudo tão divertido e inteligente. Numa entrevista em Cannes, o repórter teve oportunidade de dizer a Woody Allen que seus melhores filmes eram os que fez com Mia Farrow. E o que ele retrucou? “I know, Eu sei.” Alguns desses filmes eram – são? - obras-primas, mas o olhar sobre eles está mudando. O olhar do público, da crítica. O olhar de Woody Allen? Nunca houve uma mulher como Hannah, mas agora, para ele, a compassiva Mia é louca, e ponto final. O filme, porém, permanece.

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