Clássico do Dia: 'Umberto D' foi o filme preferido de Vittorio De Sica

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este em que o diretor lapida o retrato do velho altivo e teimoso que não desiste de seus padrões burgueses, mesmo diante da adversidade

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Sempre houve um culto a Vittorio De Sica. Martin Scorsese, na sua Viagem pelo Cinema Italiano, tece as maiores loas ao diretor de Ladrões de Bicicletas e Umberto D. André Bazin, o teórico que conceituou sobre o que é o cinema, mantinha-se fiel a ele, enquanto toda a geração de críticos que deu origem à nouvelle vague, e alguns, pelo menos, eram seus filhotes – François Truffaut, Jacques Rivette, etc –, preferia Roberto Rossellini e o seu método de desdramatização do roteiro. Com o tempo, todo De Sica passou a ser contestado. No Dicionário de Cinema, Jean Tulard evoca os motivos da queda – pieguice, exploração abusiva das crianças, miserabilismo, ausência de espírito revolucionário.

Bazin dizia que Umberto D talvez não seja tão satisfatório, esteticamente, como Ladrões de Bicicletas, mas credita o fato à sua maior ambição. O filme radicaliza uma ideia do roteirista Cesare Zavattini, que dizia que o ideal do neorrealismo seria um espetáculo cinematográfico retratando 90 minutos na vida de uma pessoa para a qual não ocorre nada. Foi assim que surgiu a história do aposentado Umberto. Na abertura, há uma manifestação de idosos reclamando da desvalorização de suas pensões. O grupo é guardado de perto pela polícia, que isola os manifestantes. Os apartados da sociedade. Um deles é Umberto, interpretado por um não profissional, Carlo Battisti. Ele mora numa pensão, está prestes a ser despejado pela dona, que o intima a pagar os atrasados.

Cena de 'Umberto D', de Vittorio De Sica Foto: Rialto Pictures

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Umberto só encontra compreensão na funcionária da pensão, mas ela também está prestes a ser defenestrada. Uma cena dos dois, mesmo sem diálogo, revela que está grávida. Deprimido, Umberto pensa em matar-se. De Sica dizia que um jovem tentar suicídio é coisa grave, mas quando se trata de um velho, que já está naturalmente mais próximo da morte, é horrível. Uma sociedade que permite isso está condenada. Umberto só desiste por causa do cachorro, Flick. Sente-se responsável, teme pelo que possa ocorrer com ele. O final, inclusive, é um momento de tensão. Passa um trem, e De Sica cria o suspense. Do outro lado, o cachorro terá morrido? O trem como símbolo do destino remete à trilogia de Apu, do indiano Satyajit Ray, que assimilou lições do neorrealismo italiano. Mas, se é destino, então De Sica está querendo afirmar alguma coisa com seu belo desfecho.

O que é o cinema? Uma arte realista? Por mais que teorizasse sobre o assunto, Bazin amava os filmes mais que a própria teoria e nunca a considerou uma camisa de força. (Existem casos de filmes dos quais ele admitia que não deveria gostar, mas gostava. Nunca se desculpou por isso.) Contradizendo Tulard, ele afirmava que a perfeição de Ladrões de Bicicletas está no miraculoso equilíbrio entre a concepção revolucionária do roteiro e as exigências de uma narrativa clássica. Vale lembrar – Ladrões é sobre um desempregado que precisa de sua bicicleta para arranjar um bico (colar cartazes). Quando a bicicleta é roubada, ele parte com o filho numa jornada por Roma, tentando recuperá-la. No desespero, tenta roubar outra bicicleta, mas é pego.

No seu Guide for the Film Fanatic, Danny Peary destaca o que não deixa de ser o twist, o artifício narrativo – onde estava a polícia que não viu a bicicleta de Lamberto Maggiorani ser roubada e agora o prende? A cena do menino (Enzo Staiolo) cerrando a mão do pai em apoio certamente contribuiu para que o filme, por décadas, fosse considerado um dos melhores do mundo. A máscara de Staiolo é extraordinária – precocemente amadurecido pela crueldade do mundo. Entre Ladrões e Umberto D, no período de 1948 a 51, De Sica realizou Milagre em Milão, passando do realismo para o surrealismo em busca de uma nova perspectiva que, mesmo divergindo do formato do neorrealismo tradicional, lhe permitisse continuar retratando a miséria das grandes cidades. O filme baseia-se num livro de Zavattini, Toto Il Buono. Mostra esse garoto adotado pela velha que o encontrou num repolho. Toto recebe dela o poder de operar milagres. Cria uma comunidade de miseráveis, mas a heterogeneidade do grupo condena o experimento ao fracasso. O filme não se enquadra facilmente em nenhuma norma. Foi definido como uma versão infantil de O Idiota, de Dostoievski, fábula fantástica e até sátira social swiftiana.

Como é possível que essa fantasia seja seguida por um filme cujo objetivo é abrir para o público uma janela sem subterfúgios para o real? Talvez seja interessante voltar a Bazin, quando ele diz, mesmo não colocando nesses termos, que a primeira grande cisão do neorrealismo pode ter sido o desejo dos grandes diretores do movimento de irem "além" (Rossellini) ou mais fundo (De Sica). Pode parecer um conceito meio abstrato, mas é o amor pela realidade que faz com que De Sica e Zavattini criem uma sequência inteira que parece não ter vínculo algum com a história de Umberto. O despertar da doméstica é uma sucessão de pequenos gestos, econômicos e precisos, como se fosse um documentário dentro do filme. Nada a ver, tudo a ver. É dessa maneira, contrapondo a criada, como representante de um estrato inferior, que De Sica lapida seu retrato do velho altivo e teimoso que não desiste de seus padrões burgueses, mesmo diante da adversidade. Não são indivíduos, é toda uma sociedade que está sendo rejeitada.

O empobrecimento de Umberto o leva ao limite de tentar recorrer à caridade pública, mas isso seria desistir de sua dignidade. Sempre com o cão fiel, ele estende a mão para recolher esmolas, mas o fato de ser quem é o impede de aceitar a própria degradação. Pauline Kael considerava o filme enfático em sua tentativa de nos tornar conscientes do que significa ser um homem e também, aliás – é ainda Kael quem diz –, o que é ser um cachorro. Umberto D, o personagem como o filme, respiram uma paixão moral que a estética de De Sica, liberta do sentimentalismo que há em de Ladrões de Bicicletas, transforma em depuração dramática sem paralelo na obra do diretor, nem em sua parceria com Zavattini. O roteirista considerava que o cinema, mais que qualquer outro meio de expressão, possui a capacidade inata de mostrar as coisas dentro daquilo que ele chamava de "cotidianidade". O desafio da arte seria mostrar o cotidiano sem ser banal.

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A cena da criada, a dor de garganta de Umberto, a sua determinação de se suicidar. Ele organiza suas poucas coisas. Flick está ali, alerta, atento a tudo. Antes de se tornar diretor, De Sica foi ator, dos mais populares sob o fascismo, na época do chamado cinema de telefones brancos. Fazia sempre o sedutor. Nos anos 1950, paralelamente à atividade de diretor, seguiu atuando e fez grande sucesso como o marechal da série iniciada com Pão, Amor e Fantasia, de 1953. Em 1959, Rossellini ofereceu-lhe seu maior papel, o do General della Rovere em De Crápula a Herói. Para o público, e com raras exceções, encarnava o italiano macarrônico, bonachão. (Na vida privada, não era bem assim. Durante anos, e pela ausência de leis de regulamentação do divórcio na Itália, viveu maritalmente com Maria Mercader, com risco até de prisão. Em meados dos 60, exilaram-se na França, onde puderam, enfim, oficializar a união.)

Desde a eclosão do neorrealismo, no imediato pós-guerra, a parceria com Zavattini colocou sempre a questão – quem era, afinal, o autor da dupla?

A maioria da crítica nunca teve dúvida de que era Zavattini. Há controvérsia. Scorsese vê em Umberto D o carinho de De Sica pelo próprio pai. E Bazin exaltava nele o artista. Quando o filme chegou às telas, no começo dos anos 1950, o neorrealismo "clássico" estava chegando ao limite. Como proposta estética, nascera com o compromisso de colocar na tela a realidade do país derrotado na guerra. Dividida entre ex-integrantes da resistência, predominantemente comunistas, e democratas-cristãos, a Itália pendia para a esquerda. Foi nesse quadro que os EUA começaram a despejar dinheiro na Europa, por meio do Plano Marshall. A Itália foi beneficiada, e isso evitou o que poderia ter sido a comunização.

O país começou a se reerguer economicamente. O cinema passou a refletir o fenômeno. O neorrealismo mudou. Virou História com Luchino Visconti, realismo interior com Michelangelo Antonioni e Federico Fellini, realismo róseo com Luigi Comencini. O próprio De Sica, radicalizando conceitos de Zavattini, voltou-se para o intimismo, sem desistir do social. Nos anos 1960 e 70, perdeu credibilidade e virou diretor comercial, a serviço da dupla Sophia Loren/Marcello Matroianni. Fez até uma desastrosa incursão pelo universo de Jean-Paul Sartre em O Condenado de Altona, de 1961. Apesar de belas cenas e da gravidade da trilha de Shostakovich, o problema está no existencialismo, que lhe era estranho.

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Prêmios nunca lhe faltaram. Gran Prix em Cannes, quando ainda não havia Palma de Ouro. Oscars, no plural. Por Vítimas da Tormenta e Ladrões de Bicicletas, quando ainda não havia o prêmio de filme estrangeiro – foram Oscars especiais – e, depois, sim, por Ontem, Hoje e Amanhã, em 1964, e O Jardim dos Finzi-Contini, em 1971. Por esse ganhou também o Urso de Ouro em Berlim. No começo dos anos 1960, Sophia Loren ganhou todos os prêmios de interpretação do planeta pelo papel num filme de De Sica, Duas Mulheres, uma adaptação de Alberto Moravia. Mãe e filha perdidas na guerra. Cesisa, La Ciociara. Sophia é grandiosa, mas era uma estrela. Certos planos, os closes no rosto dela, iam na contramão do homem que erguera monumentos com não profissionais. Carlo Battisti era um renomado linguista. A ironia – o personasgem quase não fala. Durante muito tempo a fama de filme triste colou, como uma etiqueta pejorativa, em Umberto D. De Sica considerava-o seu filme preferido. Morreu em Paris, em 1974, aos 73 anos, sem realizar o sonho de adaptar Um Coração Simples, de Gustave Flaubert. Já não o teria feito, outro coração simples, o de Umberto?

 

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