Clássico do Dia: Tudo em 'Bom Dia, Tristeza' é questão de linguagem

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este que, sob múltiplos aspectos, costuma ser considerado um filme atípíco de Otto Preminger, mas só aparentemente

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Por Luiz Carlos Merten
7 min de leitura

Na segunda metade dos anos 1950, enquanto Cuba vivia o processo revolucionário que levou Fidel Castro ao poder na ilha, Guillermo Cabrera Infante foi crítico de cinema em Havana. Exercia o ofício escrevendo na revista Carteles e, depois, no jornal Revolución. Uma seleção de suas críticas foi reunida no volume Un Oficio del Siglo XX. Um dos mais belos textos é dedicado a Bom Dia, Tristeza, o longa de 1958 que Otto Preminger adaptou do livro de Françoise Sagan. A par de tudo de bom que diz sobre o grande diretor, Cabrera Infante deleita-se em destacar, e descrever, com seu brilho de romancista, os créditos de Saul Bass.

Aquele rosto, aquela lágrima. Bass foi um grande artista gráfico e visual. Chegou a dirigir – Fase IV: Destruição, de 1974 –, mas é lembrado principalmente pelas cenas de créditos que criou para Preminger e Alfred Hitchcock. Para esse, fez o storyboard de sequências memoráveis como a do chuveiro e o assassinato de Arbogast na escadaria em Psicose, de 1960, que o mestre do suspense usou só em parte. As espirais de Um Corpo Que Cai, as chamas de Exodus, o bonequinho de Bunny Lake Desapareceu são excepcionais, mas os créditos de Bom-Dia Tristeza são uma joia em si, um filme dentro do filme, um poema abstrato que sintetiza a própria obra-prima de Preminger.

Cena de 'Bom Dia Tristeza', de Otto Preminger, de 1958 Foto: Columbia Pictures

Cécile, interpretada por Jean Seberg, é a filha mimada do playboy viúvo David Niven. Vivem a doce vida da Cote d'Azur. A amante dele da vez é uma garota como Cécile. Chama-se Elsa e quem o faz o papel é uma loirinha cheia de graça que surgiu na trilha de Brigitte Bardot – Mylène Demongeot. Mas papai arranja uma mulher madura, e é Deborah Kerr. A mamata termina. Deborah chega para encerrar a festa. Cécile provoca uma cena, uma ruptura. Alguém morre num acidente que pode ter sido muito bem um suicídio. Cécile vai ter de conviver com essa culpa. Seu belo rosto dissolve-se. Essa dissolução é o conceito dos créditos de Saul Bass.

Sob múltiplos aspectos, Bom Dia Tristeza costuma ser considerado um filme atípíco de Preminger, mas só aparentemente. Prolonga uma pesquisa que começou com Laura, de 1944. É um filme intermediário. Nos anos 1940 e parte dos 50, Preminger construíra seu nome na tendência chamada de filme noir. Laura, Anjo ou Demônio?, Passos na Noite, Alma em Pânico. Nos 50, fez os grandes musicais eróticos e sombrios – Carmen Jones, Porgy e Bess. Durante todo esse tempo enfrentou a censura da indústria para fazer filmes adultos, para fazer de forma adulta filmes que abordavam mudanças de comportamento, sexo, drogas, racismo.

Em 1959, com Anatomia de Um Crime, focou na Justiça. No ano seguinte, com Exodus, comprou sua maior briga para garantir que o blacklisted Dalton Trumbo assinasse o roteiro, que adaptou do romance épico de Leon Uris sobre a formação do Estado de Israel. Não levou essa batalha sozinho – o astro produtor Kirk Douglas levou-a, paralelamente, para que Trumbo também pudesse assinar o roteiro de Spartacus. Com Anatomia de Um Crime e, depois, através de Exodus, Tempestade Sobre Washington, O Cardeal e A Primeira Vitória, Preminger produziu e dirigiu uma série de cinco grandes filmes que até hoje representam a que talvez seja a maior investigação feita pelo cinema, ou por cineastas, sobre as instituições (Justiça, Congresso, Igreja, Exército) na vida norte-americana.

Ao trabalhar com a tela larga no western O Rio das Almas Perdidas, de 1954, Preminger iniciou também uma investigação estética. Já imprimira seu toque europeu, expressionista, na reformulação do policial, mas agora o caso foi outro. Descobriu o wide screen. A tela ampla, horizontal, deixou de ser só um formato. Preminger precisou de histórias cada vez maiores para preencher aquele tamanho de tela. Adequou sua mise-en-scène – o domínio do espaço por meio do movimento da câmera e dos atores – para construir o tempo com elegantes planos-sequências que eram tanto mais elaborados quanto serviam a um propósito crítico e desmistificador. Mostravam o massacre do indivíduo pelas instituições. O Tom Tryon de O Cardeal é exemplar. Enfrenta a Ku Klux Klan, o nazismo, sacrifica o amor e, no final, investido como cardeal, e filmado à luz daquele vitral, é só um velho que parece ter tudo o que um homem pode sonhar, mas, na verdade, nós, o público, sabemos quanto perdeu.

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The World and Its Double, O Mundo e Seu Duplo, como se chama o livro de Chris Fujiwara, The Life and Work of Otto Preminger. A Vida e o Trabalho dissecados com rigorosa capacidade de análise. Numa carreira tão extraordinária, e com tantos clássicos – ele ainda fez depois Bunny Lake e Amigos São para Essas Coisas –, Bom Dia Tristeza possui um caráter (uma urgência?) especial. Só para contextualizar, e independentemente do valor literário, Sagan tem o mérito de haver iniciado a nouvelle vague. O cinéfilo lembra-se. A França era, nos 50, nas artes, na política, um país de velhos. Sua juventude estava sendo recrutada para morrer nas guerras coloniais – na Indochina, no norte da África. Na literatura, no cinema, ergueu-se uma geração de jovens. Sagan foi pioneira, com seu livro que chegou às livrarias aportando a nova onda e virou um fenômeno editorial planetário, em 1954. Logo em seguida veio a explosão de Brigitte Bardot em E Deus Criou a Mulher, de Roger Vadim, de 1956.

Cécile expressava um mal-estar da juventude, que iria se acentuar nos anos seguintes. O tema, e o estilo. Não é descabido pensar que os autores da nouvelle- vague possam ter tirado dos movimentos de câmera de Preminger o conceito do travelling como uma questão moral. O que não há dúvida é que a atriz, sim, virou uma musa para os autores franceses. Como produtor e diretor, Preminger muitas vezes teve atores e atrizes sob contrato. Jean Seberg foi cria dele. Descobriu-a em Joana D'Arc, quando precisava de uma atriz desconhecida, uma garota, para dar vida à heroína da peça de George Bernard Shaw, que considerava, desde os seus tempos com Max Reinhardt, o melhor texto já escrito de teatro. Confirmou-a em Bom-Dia Tristeza. Só depois veio Jean-Luc Godard, a Patriciá de Acossado, em 1960.

Jean era uma atriz crua, inexperiente quando interpretou Joana D'Arc. Ingrid Bergman, que fez, nos anos 1940 e 50, os filmes de Victor Fleming e Roberto Rossellini, tinha idade para ser a mãe de Joana. Ficou célebre a história dos tormentos que Preminger fez passar sua atriz. Talvez fosse a sina das Joanas da tela – Falconetti enlouqueceu ao fazer O Martírio de Joana D'Arc, de Carl Theodor Dreyer, nos anos 1920. Joan queimou-se na cena das fogueira. Antes fosse só isso. Ela própria dizia que havia conseguido sobreviver a Preminger. Na Sagan, o fundo não era a grande História, mas as vidas destroçadas de uma elite que se consumia na busca do prazer. De diferentes maneiras, Michelangelo Antonioni e Federico Fellini dariam outra forma a essa insatifação em A Aventura e A Doce Vida. Com Preminger virou estudo do mundanismo, uma linha importante do seu trabalho.

Tudo em Bom Dia Tristeza é questão de linguagem, não apenas a forma como Cécile e Anne, Jean e Deborah Kerr, muitas vezes se dizem as coisas. “Really welcome”, “Really really thank you”. O que existe é uma disputa de narrativa entre as duas mulheres na vida de Raymond, David Niven. O filme se constroi num choque de tempo entre passado e presente, realidade e memória. O ponto de vista é o de Cécile, mas Anne chega para tentar mudar essa narrativa. O efeito da passagem de Anne pela vida de pai e filha será devastador. Raymond tem uma cena em que diz à filha algo como “Nós somos felizes, não?”, mas a forma como Preminger o isola no plano é uma prova de amargura, e de que algo se quebrou na relação com Cécile.

Preminger tinha a fama de autoritário, gritão. Hoje seria denunciado por abuso. Infernizava a vida de todo mundo no set. Humilhou o lendário diretor de fotografia Georges Périnal por uma falha na revelação, nunca ficava satisfeito com a partitura de Georges Auric, a ponto de o compositor gritar também – “Vous êtes insouportable.” Com Mylène, o berro não funciuonava. Na primeira vez que ele gritou com ela, Mylène, calmamente, lhe disse – “Se continuar gritando assim, sua veia vai rebentar.” As maiores brigas eram com Jean Seberg. Preminger desdenhava de sua interpretação. Niven tentou interferir, Deborah um dia lhe disse – “Qualquer outra mulher já teria entrado em colapso. Ela parece frágil, mas sabe lidar com ele.” Bom Dia Tristeza possui algumas das mais belas cenas filmadas. Tem a existencialista Juliette Gréco cantando o tema. E tem o rosto de Jean, quando Cécile passa o creme, na última cena, diante do espelho.

O rosto vira uma máscara (fúnebre?), humanizada quando ela verte a lágrima que a vida toda permaneceu na lembrança de Cabrera Infante. François Truffaut, muito provavelmernte, lembrou-se de Preminger na cena em que Jeanne Moreau também passa creme diante do espelho, assistida por Jules/Oskar Werner, em Uma Mulher para Dois, de 1962. A câmera, em Bom Dia Tristeza, está em constante movimento. Há um fluxo permanente na consciência de Cécile, o que pode ser uma contribuição do roteirista Arthur Laurents, que, a propósito, não ficou muito satisfeito. (Achava que Preminger foi melodramático.) Mais que isso – a consciência da oscilação das coisas, e do seu fim iminente, foram grandes temas de Truffaut em Jules e Jim, O Garoto Selvagem e O Quarto Verde. Já estavam em Preminger.

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Onde assistir:

  • À venda em DVD

 

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