Clássico do Dia: Tratamento cromático em 'Dois Destinos' realça confusão de sentimentos entre irmãos

Todo dia um filme clássico é destacado pelo crítico do 'Estado'; o escolhido da vez é dirigido por Valerio Zurlini

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Por Luiz Carlos Merten
7 min de leitura

Havia, na crítica brasileira do começo dos anos 1960, uma concepção meio torta – herdada da politique des auteurs da revista Cahiers du Cinéma – que privilegiava a autoralidade de diretores como Don Weiss. Sua fantasia oriental As Aventuras de Haji-Baba, desaparecida no tempo mas que conserva o encanto – o repórter pôde revê-la há alguns anos, onde mais senão na França? -, valia mais, por sua afirmação dos tempos fortes da ação, que a 'pastosidade dos sentimentos' que os críticos nomeavam e identificavam em Dois Destinos. O longa de Valerio Zurlini, adaptado de Cronaca Familiare, de Vasco Pratolini, venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1962, dividindo o prêmio com A Infância de Ivan, o primeiro Andrei Tarkovski. Naquele tempo, os filmes demoravam para chegar às salas brasileiras. Dois Destinos estreou já sob a ditadura militar. Havia questões mais urgentes com que se preocupar do que a triste relação de dois irmãos criados em circunstâncias diversas, um forte, o outro fraco, e que trilham caminhos muitas vezes antagônicos.

Dois Destinos nunca foi uma unanimidade, e ainda bem, porque, como dizia Nelson Rodrigues, a unanimidade é burra. Para fazer o crossover e atingir todos os públicos, o artista talvez precise renunciar à radicalidade, fazer concessões. Dois Destinos adquiriu fama de cult, era um dos filmes preferidos de Carlos Reichenbach. Na verdade, Reichenbach era admrador incondicional de Zurlini, mas homenageou Dois Destinos de forma particular, ao chamar de Dois Córregos o seu longa de 1999. Para cinéfilo de carteirinha, a crônica familiar zurliniana pode muito bem carecer de maior explicação. O longa é reconhecido por seu prodigioso tratamento da cor – uma cor patinada para expressar o tempo e os sentimentos dos personagens, daí, talvez, pictoricamente, a pastosidade, como tinta num quadro. Mas eles, os críticos, queriam dizer sentimentos melosos, isso sim.

Os atores são Marcello Mastroianni e Jacques Perrin. E agora, para ampliar o conhecimento, vale lembrar que Veneza, naquele ano, também premiou Jean-Luc Godard (Viver a Vida, prêmio especial), Fernando Birri (Los Inundados, melhor filme de diretor estreante, ex-aequo com Frank Perry, de David and Lisa), Emmanuelle Riva (Thérèse Desqueyroux, de Georges Franju, melhor atriz) e Burt Lancaster (O Homem de Alcatraz, de John Frankenheimer, melhor ator). O júri era presidido por Luigi Chiarini e integrado, entre outros, pelos cineastas Yossif Kreifitz e Ronald Neame.

A par do entusiasmo de alguns (muitos?), Dois Destinos provocou reações adversas. Além da animosidade de parte da crítica brasileira, Roger Boussinot, na sua grande Enciclopédia do Cinema, fustiga o filme sem dó, definindo-o como miserabilista e maneirista. Vittorio de Sica, num determinado momento, sofreu acusações parecidas, e todo o conjunto de sua obra foi contestado por pieguice, miserabilismo, abuso de crianças, ausência de espírito revolucionário. Ladrões de Bicicletas? Umberto D? Lixo! Assine embaixo dessa temeridade quem quiser. Dois Destinos era o filme com que Zurlini gostaria de ter estreado na direção, dez anos antes. Nascido em Bolonha, em 1926, formara-se em direito para satisfazer o pai, mas nunca exerceu. Mal colocou na mão o diploma e voltou à universidade para estudar arte e letras. Tornou-se documentarista, com numerosos curtas de arte, mas já pensando na estreia no longa, e na ficção. Ao surgir, o romance de Pratolini provocou-lhe uma reação que ele chamava de indescritível. Zurlini nunca consegiuu explicar, racionalmente, como nem por quê o livro mexeu tanto com ele, mas era, com certeza, o filme que ele sentia que tinha de realizar.

Procurou o escritor, fizeram um pacto. Zurlinni, e só ele, seria o diretor de uma eventual adaptação. E o filme teria de ser feito em cores. Nuncas houve, entre eles, possibilidade de fazer a crônica familiar em preto e branco. A cor teria sido inviável no cinema italiano de 1952, que recém começava a se distanciar dos rígidos cânones do neo-realismo. Zurlini reralmente estreou com um longa baseado em Pratolini, mas foi Quando o Amor É Mentira, adaptado de Le Ragazze di San Freddiano, em 1954. O filme não era um projeto dele. Foi-lhe encomendado. Zurlini não gostava do livro, o único de Pratolini que não lhe falava ao coração. Aconselhou-se com o autor, que lhe deu carta branca para fazer o filme que quisesse, como quisesse. Zurlini fez uma comédia que, segundo ele, não era bem comédia. A experiência foi boa porque, tendo feito o teatro universitário, o direror trabalhou com um elenco predominantemente jovem, muita gente fazendo cinema pela primeira vez.

'Dois Destinos', filme de Valerio Zurlini Foto: MGM

Em 1959, fez Verão Violento – que se encontra na série Clássico do dia. Seguiram-se A Moça com a Valise, com Claudia Cardinale e Jacques Perrin, de 1960. E o Pratolini, também com Perrin. Zurlini sempre se definiu como tolstoiniano. Como o grande escritor russo de Guerra e Paz, sempre acreditou que uma história íntima fica maior com um grande acontecimento histórico de fundo, para lhe dar amplitude. Foi assim com a 2.ª Grande Guerra e o ano emblemático, para os italianos, de 1943, quando houve a queda de Benito Mussolini e foi instalado o governo provisório de Badoglio. No caso de Dois Destinos, com a anuência de Pratolini, tentou outro caminho. Numa entrevista a Jean Gili, no livro Valerio Zurlini, editado pelo Museo Nazionale del Cinema, explica que encarou o filme como um experimento radical. Queria saber se era possível abordar os sentimentos de uma forma que definiu como 'em estado puro', sem as condicionantes de eventos históricos e sociais. Os dois irmãos pensam e agem - reagem - diferente, mas estão ligados de forma visceral. Para contar essa história, Zurlini abriu mão de movimentos de câmera, ângulos rebuscados, reduziu ao mínimo a cenografia e os figurinos e valeu-se, segundo as próprias palavras, de símbolos rarefeitos para situar a época.

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Os sentimentos seriam os mesmos, em quaisquer circunstâncias. Com essa convicção, foi absolutamente fiel à letra do romance e ao tom do diálogo, mas fez uma exigência prontamente atendida por Pratolini. Pensando em termos de cinema, ele sempre achou que faltavam páginas no livro, exatamente as que explicariam a origem da oposição entre os irmãos. Zurlini acedeu e escreveu duas cenas que não existem no livro para mostrar que as diferenças psicológicas estão ligadas ao determinismo das classes sociais em que os irmãos, separados na origem, fizeram sua formação. Com economia de meios, a narrativa situa que a crônica familiar ocorre entre os anos do fascismo e se concentra no período entre 1943 e 45, no período do pós-guerra (e da reconstrução). O tratamento cromático, a cargo de Giuseppe Rotunno, estabelece gamas de azuis, de cinzas e ocres que criam efeitos de cor sem cor, para expressar a variação/confusão de sentimentos.

Rotunno foi o fotógrafo de Luchino Visconti em Noites Brancas, Rocco e Seus Irmãos e O Leopaardo, dominando tanto o preto e branco como a cor. Tendo sido historiador de arte, Zurlini inspirou-se em pintores que conhecia bem, o florentino Ottone Rosai e o bolonhês Giorgio Morandi. Como havia filmado Quando o Amor É Mentira em Florença, oito anos antes, Zurlini conhecera a topografia da cidade. Encontrou-a mudada - toda a Itália estava em processo de transformação econômica e social, por volta de 1960 -, mas tratou de procurar, e encontrou, casas e ruas ainda próximas do universo de Rosai. Esse grande pintor virou a obsessão de Zurlini, que tinha um quadro dele em casa (e o levava para os sets). Rosai pintou operários, atravessou o futurimo e o expressionismo para chegar ao abstracionismo, o que o próprio Zurlini, muito além do intimismo, também fez com o deserto de seuis tártaros, outra adaptação – do romance de Dino Buzzati.

Na tramas, que começa em Roma, em 1945, o jornalista Enrico/Mastroianni recebe a notícia da morte do irmão. Lorenzo/Perrin foi adotado pelo mordomo de um aristocrata quando sua mãe morreu no parto, com a condição de romper os laços familiares. Anos mais tarde, após o desaparecimento do benfeitor, os irmãos se reaproximam e Lorenzo revela a inabilidade para tomar pé da própria vida. Enrico, criado pela avó, enfrentou a miséria, adquiriu consciência de classe. Endurecido, e sem dinheiro, enviou a avó para o asilo, uma coisa que Lorenzo jamais faria. Ele acusa Enrico, fala em desonra. Conversam sobre a mãe que ele não conheceu. Com a supervisão de Enrico, Lorenzo ajeita-se. Arranja um emprego, casa-se - com Valeria Ciangottini, a garota na cena da praia, que Marcello/Mastroianni não consegue ouvir no desfecho de A Doce Vida, de Federico Fellini, de 1960. Quando parece que finalmente vai começar a viver, Lorenzo é diagnosticado com uma doença grave. Enrico revisa tudo na lembrança para, afinal, e tardiamente, decifrar o irmão e quanto ele foi incompreendido.

Lorenzo – o ator e o nome do personagem são os mesmos do adolescente nobre que tenta proteger Aida/Cardinale em A Moça com a Valise. Não é mera coincidência. Poderia, realmente, ser o mesmo personagem. Zurlini cria um mundo de oposições – responsabilidade e desonra, pureza e pecado, morte e ressurreição. Leva a interiorização ao limite. E domina o filme, e a obra toda do autor. A voz de Enrico, sobre Lorenzo - “Ao redor começou a erigirse essa prisão de ternuras, hábitos e complexos que terminou por te condenar.” Lorenzo é bom demais, puro demais. Tem algo do Alain Delon de Rocco e Seus Irmãos, de Luchino Visconti, que Pratolini ajudou a escrever. São personagens que não cabem nesse muno. De toda a extraordinária beleza – visual e dramática – desse verdadeiro clássico, uma cena toca o sublime. A visita à avó, o passeio e a despedida. Ela atravessa a rua para rentrar no asilo, e é um adeus definitivo, mesmo que ainda não saibam. Nunca mais irão se reencontrar. Sylvie é quem faz o papel. Já passara dos 80 anos e seria, em 1965, A Velha Dama Indigna, na adaptação de Bertolt Brecht por René Allio, como a velhinha que, finalmente, aprende a viver e tem um tempo para ela, após a morte do marido.

Zurlini foi um autor de poucos filmes. Fez depois Le Soldatesse, Sentado à Sua Direita, A Primeira Noite de Tranquilidade e O Deserto dos Tártaros. Sua filmografia se resume a esses oito títulos. Para os admiradores fieis, foi o homem - o artista – que filmou as estações da alma. Morreu em 26 de outubro de 1982, em Verona, pouco depois de participar do júri de Veneza que premiou O Estado das Coisas, de Wim Wenders (Leão de Ouro), e Tentativa, de Krysztof Zanussi (prêmio especial).

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