Clássico do Dia: 'Terra' é otimista na crença da força do coletivo humano

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este longa de de Alexandr Dovjenko que talvez seja o poema revolucionário mais belo do cinema

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Em 1958, realizou-se a Feira Internacional de Bruxelas, que incluiu a escolha dos melhores filmes de todos os tempos por um colegiado de crtíticos de todo o mundo. De 1 a 10, sendo o primeiro, o melhor dos melhores, O Encouraçado Potemkin, de Sergei M. Eisenstein, e o décimo, Terra, de Alexandr Dovjenko. Charles Chaplin ficou em segundo com Em Busca do Ouro, Vittorio De Sica em terceiro com Ladrões de Bicicletas, Carl Theodor Dreyer em quarto com O Martírio de Joana D'Arc, Jean Renoir em quinto com A Grande Ilusão, Erich Von Stroheim em sexto com Ouro e Maldição, David W. Griffith em sétimo com Intolerância, Vsevolod Pudovkin em oitavo com A Mãe e Orson Welles em nono com Cidadão Kane.

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Vale destacar que o filme mais recente nessa lista de dez já tinha quase 20 anos – Citizen Kane é de 1941. Quase todos, a imensa maioria, eram filmes do período silencioso, quando a sintaxe da tela ainda estava sendo desenvolvida pelos grandes pioneiros. Justamente o fim dos anos 1950 foi um período marcado por intensas transformações – técnicas e estéticas. Novas câmeras portáteis com gravadores acoplados iriam mudar a prática de fazer filmes. Surgiram movimentos como a nouvelle vague e o free cinema, com filmes mais independentes, mais autorais (e baratos). A própria indústria estava mudando, e para fazer frente ao fenômeno da televisão, os filmes tomaram outro rumo. Ficaram maiores – mais caros, mais longos. Para forçar o público a ir ao cinema, a própria tela mudou de formato. Tornou-se cinemascope, 3-D, Cinerama. Apenas mais dois anos e é provável que, por volta de 1960, a lista incluísse algum clássico da nova onda francesa, Hiroshima Meu Amor, de Alain Resnais, ou o Acossado, de Jean-Luc Godard.

Eisenstein e Pudovkin foram grandes teóricos da montagem. A cena da escadaria de Odessa em Potemkin e o degelo do rio Neva em A Mãe ilustram os conceitos de ambos. Dovjenko foi outra coisa. Originário da Ucrania, nunca deixou de cantar o seu país, destaca Jean Tulard no Dicionário de Cinema. Foi secretário de seção, comissário do povo, diplomata na Polônia e na Alemanha. Largou tudo pelo cinema. Estreou em 1926, com Vasya, o Reformador. Três anos mais tarde realizou seu considerado primeiro grande filme – Asrsenal. No ano seguinte, surgiu Terra. Dovjenko é um caso único no período de ouro do cinema soviético. Casou-se em 1928 com Iulia Solntseva, que virou sua assistente de direção, e mais que isso. Quando ele morreu, em 1956, Iulia prosseguiui filmando os roteiros do marido com escrupulosa fidelidade ao estilo dele. Diante de Epopeia dos Anos de Fogo, de 1962, o próprio Godard exclamou que gostaria de poder fazer filmes comunistas sinceros como os de Madame Dovjenko.

Existem duas versões conhecidas de Terra – com 63 e 69 min. Os seis minutos de diferença referem-se a uma cena, em particular, que foi cortada das versões exibidas no estrangeiro. O filme possui uma história muito simples – aborda a criação de uma fazenda coletiva, um kolkoz, numa aldeia ucraniana. O líder dos camponeses organiza o movimento para a compra de um trator, que facilitará as atividades – plantio e colheita – da terra. Ele comemora o sucesso da iniciativa dançando na estrada. É morto por um tiro lançado por um jovem kulak, inimigo da revolução. Todo o filme se constroi nessa antinomia entre o novo e o velho. Os kulaks, os cristãos opõem-se ao progresso. Os jovens celebram o coletivismo, o trator, a paridade sexual. Na concepção lírica de Dovjenko, as pessoas morrem quando estão felizes. Semyon Svashenko tomba enuanto dança, inebriado de amor. O velho avô morre sorrindo sobre um monte de maçãs. Durante o enterro de Semyon, uma mulher dá à luz um bebê e a namorada do líder, nua no quarto, expressa seu vazio tocando as partes íntimas do corpo.

Longa de de Alexandr Dovjenko talvez seja o poema revolucionário mais belo do cinema Foto: Soviet Union

Por maior que seja a dor, Dovjenko não acredita no luto. O tema do filme é a vida que segue e a sua crença no socialismo como uma possibilidade de vida melhor e menos desigual. Vida, morte, natureza. O eterno recomeço. Quarenta anos antes de Michrelangelo Antonioni filmar a cena dos casais de jovens fazendo sexo no deserto em Zabriskie Point, Dovjenko já mostrava os jovens da aldeia em brincadeiras eróticas, rolando no solo que será irrigado para a plantação. A cena cortada é a que mostra os homens batizando o trator – faltou água no radiador e eles o enchem com urina, para dar a partida. Dovjenko acreditava na máquina como aliada – extensão? - dos homens. Nada a ver com a inteligência artificial de 2001, o supercomputador Hal 9000 que enlouquece na epopeia espacial de Stanley Kubrick.

Terra talvez seja o poema revolucionário mais belo do cinema. No Dicionário de Filmes, Georges Sadoul cita o próprio Dovjenko, defindo a proposta e o método de sua obra-prima. “Queria mostrar a situação de uma aldeia ucraniana em 1929, no momento em que ali se introduzem transformações econômicas e, sobretudo, na mentalidade das masssas.

Meus princípios são – 1) Os temas não me interessam em si mesmos. Escolho-os para expressar ao máximo as formas sociais. 2) Trabalho a partir de um material típico e aplico o método sintético. Meus heróis são representantes de sua classe. Seus gestos são essenciais. 3) O material de meus filmes é concentrado ao extremo, e o faço passar pelo crivo da emoção, que lhe dá vida e eloquência. Nunca fico indiferente ao meu material. É preciso amar e odiar muito e profundamernte, senão as obras ficam dogmáticas e secas. Trabalho com atores, mas principalmente com os rostos escolhidos na multidão. Meu cinema exige isso.”

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Dovjenko, em Terra, é direto e otimista na crença de que o coletivo humano será sempre mais forte do que a adversidade. Ele abre mão de efeitos – filma a terra, e os homens e mulheres. Pessoas simples, acontecimentos banais. Para os críticos e historiadores, é um lírico – seu diferencial. Os três filmes soviéticos votados no referendum de Bruxelas, três grandes clássicos do cinema mudo, compartilham a crença no humano. Um grande crítico baiano, Walter da Silveira, escreveu que, independentemente do que se pensa da Revolução Russa, 1917 permanece uma data fundamental para o cinema. O legado desses autores, e filmes, perdura muito além da derrocada da antiga União Soviética. O cinema talvez tenha sido – foi – a suprema realização do socialismo soviético. O que aqueles artistas apaixonados sonharam atravessa o tempo. Terra termina com a chuva caindo sobre as maçãs e as melancias reluzindo ao sol. E os girassóis da Ucrânia. Humberto Mauro, o grande pioneiro do cinema brasileiro, dizia que não podia ver uma cachoeira sem pensar no cinema. Da mesma forma, para o cinéfilo de carteirinha, é difícil ver um girassol e deixar de associá-lo a Dovjenko.

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