Clássico do Dia: Tenso e enigmático, 'O Samurai' não oferece soluções fáceis para o espectador

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estadão', como este de Jean-Pierre Melville; o diretor escolheu Alain Delon para protagonizar sua obra

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

No fim dos anos 1950, Alain Fabien Maurice Marcel Delon, o nome completo de Alain Delon, já havia chamado a atenção em filmes de Marc Alleget (Basta Ser Bonita) e Michel Boisrond (O Ponto Fraco das Mulheres). E, então, em 1959, algo se passou, algo que foi decisivo para ele. O jovem belo e insolente entrou no radar de um diretor francês de prestígio e de um autor italiano cuja origem cinematográfica remonta ao início do neo-realismo. Luchino Visconti viu na beleza e pureza de seu rosto a representação perfeita da bondade e do idealismo do protagonista de Rocco e Seus Irmãos. René Clément foi na contramão, viu outra coisa no rosto do garoto. Fez dele o assassino frio – Philip Greenleaf – de O Sol por Testemunha, que adaptou de Patricia Highsmith.

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Os dois filmes estrearam em 1960 e, anos depois, já com a reputação de grande diretor, Jean-Pierre Melville ratificou Clément. Observando as linhas do rosto e os olhos de Delon, que já se convertera em grande astro, ele teve a intuição de que o ator seria perfeito para representar na tela a solidão dos samurais. Nos anos 1950 e 60, diversos diretores japoneses, mas principalmente Akira Kurosawa, em filmes como Rashomon, Os Sete Samurais, Yojimbo e Sanjuro, consagrara a figura do samurai nos jidai-jekis, filmes de sabre. O samurai não é só um mercenário que coloca sua espada a serviço de algum suserano. Possui um código de honra, e o Bushido, o livro dos samurais, deixa claro que não existe solidão maior que a dessa figura, que vive segundo códigos estritos de fidelidade a princípios éticos. Solidão tão grande só a do tigre na selva, reza o Bushido.

Era assim que Melville via Delon. Como Pirandello, buscou e encontrou um personagem para ele num livro de Goan McLeod, The Ronin. Um crítico hoje negligenciado, Paulo Perdigão - autor de Western Clássico, sobre o caso Shane/Os Brutos Também Amam, de George Stevens -, escreveu que o livro de McLeod não tinha mais que os elementos habituais do gênero noir. (Perdigão escreveu 'gênero', mas há controvérsia. O noir seria muito mais um estilo, aplicável a diferentes gêneros - policial, gângsteres, western, até musical, o célebre balé de Gene Kelly e Cyd Charisse de Cantando na Chuva, correalizado pelo ator, bailarino e coreógrafo com o diretor Stanley Donen.) A controvérsia é tanto maior porque Melville costumava referir-se ao roteiro como original. Pesquisas na internet são vagas quanto ao autor, e ao livro.

Quando fez O Samurai, Melville já tinha uma carreira de 20 anos, inciada com Le Silence de la Mer, em 1947. Juntar Delon ao conceito do ronin serviu como ponto de partida para o que realmente lhe interessava. Para ele, o policial era a única forma capaz de reproduzir a tragédia clássica. Seus gângsteres já eram personagens trágicos em Técnica de Um Delator e Os Profissionais do Crime, de 1962 e 66. No Delon de O Samurai - o personagem chama-se Jeff Costello - ele viu a possibilidade de filtrar Dashiell Hammett, Raymond Chandler por Corneille e Racine, numa tradição francesa que faz o policial recuar ao classicismo do século 17. Foi uma figura e tanto, esse Melville. Sacralizou sua imagem e virou uma figura mítica do cinema francês. (No Brasil, tornou-se quase impossível usar a palavra 'mito', de tal forma ela foi aviltada nos últimos anos para celebrar a fraude.) Melville e seu chapéu de caubói ou de gângster, os óculos escuros. Não foi por acaso que se tornou conhecido como o mais (norte-)americano dos grandes diretores franceses, definição que, a bem da verdade, não lhe agradava. Mas ele a mereceu, por seu conhecimento da cultura dos EUA, e em especial dos policiais de Hollywood.

Outra definição possível - um dos grandes solitários do cinema francês, com Robert Bresson, Jacques Tati. Como eles, Melville tinha plena consciência do que queria erigir. Dizia que a solidão é o tema por excelência do diretor. E acrescentava - “Não existe figura mais solitária num set de filmagem.” Em meados dos anos 60, ele já era uma raridade por possuir o próprio estúdio. O primeiro gângster a gente não esquece - em 1956, com Bob le Flambeur, com Roger Duchesne, Melville tornou-se precursor da Nouvelle Vague. Câmera na mão, cenários e atores naturais, foi grande a sua contribuição. A parceria com Delon deu-lhe mais robustez na indústria, permitiu-lhe fazer, com liberdade, os filmes que queria. Esses filmes se tornaram cada vez mais solenes, artificiais, mas não porque Melville estivesse perdendo a mão. A artificialidade fazia parte da construção. Não eram só olhares sobre a realidade dos que vivem à margem. Eram filmes sobre o cinema, sobre os códigos criados para expressar esses personagens. O Exército das Sombras, O Círculo Vermelho, Expresso para Bordeaux, os dois últimos com Delon.

Alain Delon, em cena de 'O Samurai', de Jean-Pierre Melville Foto: Fida Cinematográfica

O Samurai é o melhor e mais perfeito de todos. Diferentemente de Bob le Flambeur, Melville, com pleno domínio de seus meios, busca 'uma estilização quase operística do décor e das imagens', como assinalou Perdigão. O filme virou obra de culto. Inspirou Jim Jarmush (Ghost Dog) e John Woo (O Matador). No centro de tudo, Delon é impressionante. Não representa pouco, considerando-se os grandes papeis que ele teve com Visconti (Rocco, O Leopardo) e Joseph Losey (Monsieur Klein), embora o astro, homenageado em Berlim e Cannes, tenha colocado Clément no topo de sua lista. Ao apresentar O Sol por Testemunha/Plein Soleil em Cannes Classics, Delon disse simplesmente que Clément havia sido seu mestre.

Jeff é um solitário matador de aluguel. Aceita e cumpre um contrato - o assassinato do dono de uma boate. Ao tentar receber o pagamento, descobre que foi traído e a polícia está no seu encalço. Busca o traidor e, depois, com a polícia em seu encalço, como um samurai de Masaki Kobayashi - o extraordinário Tatsuya Nakadai de Rebelião, também de 1967 -, deixa-se matar. Escrito e dirigido por Melville, fotografado por Henri Decae, o filme flui tenso e enigmático. Em momento algum, o autor fornece soluções fáceis para o espectador. Quem é esse Jeff, por que mata? Nenhuma tentativa de psicologização. Jeff carrega o próprio mistério. As poucas mulheres da trama (Nathalie, mulher de Alain Delon, e Cathy Rosier), servem de álibi para Jeff e o comissário interpretado por François Périer é tão ambíguo como o (anti)herói.

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Não chega a ser seu oposto, nem seu lado sombrio, como nos westerns de Budd Boetticher, que também possuem essa dimensão trágica. Para Melville, o comissário é o destino, Cathy, a pianista negra, é a morte e, no desfecho, tão brilhante quanto minuciosamente encenado, Jeff está entre os dois. Como réquiem - de um gênero, um personagem -, o filme evoca grandes clássicos de Hollywood e Melville destaca isso fazendo Delon vestir o chapéu e a capa de chuva que imortalizaram Humphrey Bogart em obras seminais de John Huston e Howard Hawks nos anos 1940. O tema musical de François de Roubaix contribui para o clima e não se pode esquecer que, naquele mesmo ano, ele foi o compositor de Os Aventureiros, de Robert Enrico, com Delon e Lino Ventura, para o qual criou um tema que fez história - o Funeral Submarino. A amarga ironia foi que De Roubaix morreu novo, aos 36 anos, quando investigava o fundo do mar. O próprio Melville morreu em 1973, aos 56 anos. Nasceu Jean-Pierre Grumbach e adotou o pseudônimo pelo qual se tornou conhecido ao integrar a resistência, durante a 2.ª Guerra Mundial. 'Melville', naturalmente, foi uma homenagem ao grande escritor Herman Melville, autor de Moby Dick.

 

Onde assistir:

  • À venda em DVD

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