Clássico do Dia: 'São Bernardo' é exemplar no desejo de transformação do Cinema Novo

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este, inspirado na obra de Graciliano Ramos

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Seco, conciso e sintético. Um autor que dispensa ornamentos e deixa de lado o sentimentalismo em favor da objetividade e da clareza. São características atribuídas ao escritor Graciliano Ramos.

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Em princípio, nada disso parece muito cinematográfico, e muito menos alinhado com o que o grande público identifica como cinema – os blockbusters de Hollywood, com suas narrativas cheias de ação e efeitos. Mas é um dos mistérios do cinema. Romances de Graciliano inspiraram três dos maiores filmes da história do cinema brasileiro, dois de Nelson Pereira dos Santos, Vidas Secas e Memórias do Cárcere, de 1964 e 84, e o outro, São Bernardo, de Leon Hirszman, de 1971. Conta a lenda que Nelson dirigia Vidas Secas com o livro na mãos, construindo as cenas diretamente a partir das páginas.

Graciliano foi militante comunista, e foi preso na Ilha Grande, durante a ditadura do Estado Novo. Comunista! Já deve ter gente querendo queimar os livros, nessa onda de conservadorismo furibundo que assola o mundo, e o Brasil. Leon Hirszman, que muita gente considera a cabeça ideológica do Cinema Novo, entrou, por influência do pai, no Partido Comunista. Foi um crítico da alienação das chamadas classes populares. Fez filmes como ABC da Greve e Eles não Usam Black-Tie, foi fundo nas Imagens do Inconsciente.

Antes desses clássicos, voltou-se para Graciliano Ramos. Em 1964, Vidas Secas lançara os fundamentos da estética da fome, da qual Glauber Rocha, um de seus arautos, já se distanciara em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, que lhe valeu o prêmio de direção em Cannes, 1969 (e, só para lembrar, o filme que venceu naquele ano foi o poema revolucionário de Lindsay Anderson, If.../Se). Leon adaptou São Bernardo. Usou a cor, mas ela não é decorativa. A estética não é mais a da fome, e muitas cenas até se passam à mesa de refeições.

Inspirado na obra de Graciliano Ramos, o filme de Leon Hirszman é o destacado pelo crítico do 'Estadão' Foto: Embrafilme

Não é mais a base da pirâmide social nordestina, os retirantes de Nelson, os mortos de fome de Os Fuzis, de Ruy Guerra, de 1963. Os protagonistas são agora Paulo Honório e Madalena, interpretados por Othon Bastos, o Corisco de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber, e Isabel Ribeiro. Ela, que não era particularmente bonita, deixa o espectador siderado. Sua interpretação é das maiores da história do cinema brasileiro, não dá para desgrudar o olho. A grosso modo, é uma história de ciúme, como a de Dom Casmurro, mas a questão, diferentemente de Machado de Assis, não é se Capitu traiu Bentinho. Isso não está em discussão. Paulo Honório coisifica-se, e talvez seja melhor dizer que se bestifica, ao resumir sua vida a um único objetivo – acumular terras. A fazenda, São Bernardo, é a prova do seu sucesso, mas no processo ele se torna paranoico, destroi-se do ponto de vista afetivo.

É um homem que não consegue amar. Para ele, Madalena, sua mulher, não é nem uma pessoa. É mais um objeto de sua propriedade. Leon - “Paulo Honório não consegue assumir sua consciência.” Madalena, como mulher, como professora, tem a consciência da injustiça que falta ao marido, mas não tem a força para se opor a ele. O tema do conflito entre os dois, imobilismo vs transformação, leva à destruição e à morte.

O psicológico é indissociável do social, o que está sendo discutido é a dignidade humana. Num certo sentido, é possível identificar em São Bernardo, o filme, o movimento inicial de Assim Caminha a Humanidade, de George Stevens, de 1956, outro título da série Clássico do dia. No filme norte-americano, Elizabeth Taylor, como Leslie, chega do Leste, que representa a civilização, e se choca com o atraso no latifúndio do marido, Jordan Benedict III/Rock Hudson. A diferença é que Leslie, ao contrário de Madalena, tem a força necessária para se opor ao marido. Sacode-o, ele termina por mudar. Briga a socos em defesa do humilde. Apanha, e só nesse momento, a grandeza fordiana dos derrotados, ele vira herói aos olhos da mulher.

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Assim Caminha a Humanidade celebra o 'grande'. A casa, Reata, fica no meio de um descampado a perder de vista. O título original, referente ao Texas, é Giant - Gigante. Fiel ao seu método, Stevens filmava muito, testando ângulos e interpretações para escolher as melhores tomadas na montagem. Leon Hirszman não dispôs desse luxo todo. Teve de resolver um problema crucial antes de enfrentar os problemas específicos do set. Leon havia fundado a produtora Saga Filmes com o também diretor Marcos Faria. Sua tentativa de fazer um filme de público com Garota de Ipanema não deu certo e a Saga entrou em crise. As dificuldades respingaram na produção de São Bernardo e, apesar de toda a repercussão crítica do filme, a empresa fechou. Pressionado pelo pouco dinheiro e tendo de atender às condições do mercado de filme virgem, Leon adotou o formato dos planos longos. “Tive de resolver o filme antes da montagem, só assim tornei o projeto viável”, explicou.

A câmera na mão, o ritmo lento das cenas, é como se o filme, como a vida em São Bernardo, estivesse parada. Mas há uma convulsão por baixo da superficie. São Bernardo é exemplar desse desejo que os autores do Cinema Novo tinham de mudar o cinema, o Brasil, o mundo.  O rigor cênico está a serviço dos personagens, forma e fundo andam juntos. Duas cenas. Há um longo monólogo de Madalena na igreja, quando a câmera lentamente se aproxima dela, até chegar ao rosto da atriz. Isabel Ribeiro é sublime nessa revelação de uma mulher que não chegou aonde queria. É como se Paulo Honório vencesse, ela também se imobiliza, vencida pela estrutura. Após sua morte, outra cena longa, com Paulo Honório sentado à mesa desnuda, abre um espaço de fala para esse homem que acumulou tanto, mas dá-se conta de que o endurecimento o levou a perder seu bem mais precioso, justamente porque Madalena não era uma coisa.

O filme parado sacode-se. O discurso de Paulo Honório, após o de Madalerna, a consciência tardia do senhor de São Bernardo, na voz flagelada de Othon Bastos, superpõe-se às imagens e sons dos trabalhadores da fazenda. Rostos sofridos, casebres, exatamente o oposto da dignidade humana que sempre norteou o autor em sua (grande) arte. Essas cenas de Paulo Honório e Madalena estão entre as mais belas do cinema brasileiro. Leon Hirszman criaria, dez anos mais tarde, outra cena emblemática, quando Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro, como Otávio e Romana, catam feijão em Eles não Usam Black-Tie. que foi premiado em Veneza. Jogam no lixo os grãos poders, como o próprio filho, Tião, que não tem consciência de classe e está mais precupado com seu bem-estar. São Bernardo, merecidamernte, foi um dos filmes brasileiros mais premiados do seu tempo. Levou tudo - Gramado, o Air France, a Coruja de Ouro, a Margarida de Prata da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Quase 50 anos depois, as questões da terra e da dignidade humana seguem prementes no País. Leon Hirszman morreu em 15 de setembro de 1987, pouco mais de dois meses antes de completar 50 anos.

Onde assistir:

  • Looke (conteúdo gratuito)

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