Clássico do Dia: Ruy Guerra trouxe o olhar de fora para o sertão em 'Os Fuzis'

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como esta produção fundamental do Cinema Novo brasileiro

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Sempre houve um Brasil desconhecido dos brasileiros. Agora mesmo, em 2020!, e com o País ligado pelas redes sociais, a TV (a Globo) tem feito um importante trabalho de esclarecimento, ao dar rosto às milhares de vítimas da pandemia. Embora a covid-19 esteja atingindo todos os segmentos – e a dor seja universal –, a base da pirâmide social tem sofrido mais por conta das desigualdades. Além do medo, a precariedade de meios. Há 60 anos, havia um Brasil desenvolvimentista, que gestara a arquitetura arrojada de Brasília e o movimento musical chamado de bossa nova. Outro movimento, no cinema, nasceu do desejo de refletir o Brasil real, de colocar nossa cara no espelho.

O Cinema Novo ganhou o mundo, nos anos 1960, com filmes que tinham uma nova pegada. Herdeiros do neorrealismo italiano e da nouvelle vague francesa, mas com outra identidade, outra cara. É o caso, por exemplo, de Os Fuzis, de Ruy Guerra, de 1963. É como se dois filmes coexistissem em um só, um documentário, outro ficcional. Em anos mais recentes, e sobretudo após a Retomada dos anos 1990, passou a existir um cinema brasileiro nas bordas, mas Os Fuzis precede a tendência, em verdade, todo o Cinema Novo tinha um tanto de documentário, afrontando o pouco conhecido e até o desconhecido. O filme narra a história de um grupo de soldados que chega a uma cidadezinha do sertão – Milagres – para proteger o armazém local. Milagres está no centro de uma romaria. O sertão inteiro parece acolher ao chamado do beato que comanda a adoração a um boi considerado sagrado.

Cena de 'Os Fuzis' (1963), de Ruy Guerra Foto: Copacabana Filmes / Daga Filmes / Inbracine Filmes

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Há tensão no ar, e os signos são cada vez mais transparentes. Um soldado provoca uma morte acidental com seu fuzil. Uma criança morre de fome, o que provoca a indignação do motorista chamado Gaúcho. Ele toma o fuzil de um dos soldados, esperando desencadear uma reação da população apática, mas não é isso que ocorre. São os dois filmes. Os sertanejos compõem uma massa uniforme (informe?), são vistos como num documentário de observação. Quase, senão todos, são sertanejos de verdade. Os soldados são individualizados, ganham complexidade, são atores – Nelson Xavier, Ivan Cândido. Curiosamente, Antônio Pitanga, ainda como Antônio Sampaio, é creditado somente como voz. As tensões entre eles e a comunidade – amor, sexo, consciência, culpa, violência – dão forma à estrutura narrativa. Maria Gladys tem o emblemático papel de Luísa.

É como se Os Fuzis estivesse querendo espelhar um movimento que ocorria no cinema brasileiro da época. Nos anos 1950, haviam se realizado experimentos no Rio e em São Paulo, filmes que haviam subido o morro ou lançado sua âncora na periferia, como Rio 40 Graus e Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos; O Grande Momento, de Roberto Santos. O teatro também refletia a problemática social e regurgitavam os teatros de arena. Na música, a sofisticação da bossa nova não era incompatível com a raiz do samba. Nara Leão, para citar um nome, navegaria entre as duas tendências. No começo dos anos 1960, o CPC da UNE patrocinou Cinco Vezes Favela, com episódios realizados por nomes que seriam ligados ao Cinema Novo. O golpe militar teve apoio cívico nas cidades, mas havia divisão. O proletariado e os estudantes protestavam, a repressão era forte.

Quando houve o golpe, alguns jovens autores já estavam retornando do sertão com filmes que fizeram história, embasados na crença, um tanto romântica e idealizada, de que o sertanejo é um forte e de lá viria a mudança. Nas grandes cidades, com a explosão da indústria automobilística e dos arranha-céus que não paravam de subir, frutificava o sonho americano de sucesso e dinheiro.

Surgiram aqueles clássicos que o cinéfilo sabe. Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos – e Os Fuzis. Os filmes de Glauber e Nelson são sobre os sertanejos – Manuel, Fabiano. O de Ruy Guerra constrói-se nesse choque entre a cidade e o sertão, entre os soldados e a população local, entre os 'estrangeiros' e os 'nativos'. Visto com recuo, faz todo sentido. Ruy era estrangeiro. Nascido em Moçambique, tendo se formado no IDHEC, em Paris, chegou ao Brasil e inseriu-se no meio cinematográfico. Fez-se brasileiro. Está chegando – altaneiro – aos 90 anos.

Tornaram-se conhecidas as imagens de um filme que ele deveria dirigir – Cavalo de Oxumaré, de 1961 – sobre os ritos afrobrasileiros. Irma Alvarez de cabeça raspada, o sangue do cabrito sacrificial escorrendo. O Cavalo ficou inacabado, Ruy fez Os Cafajestes no ano seguinte. A famosa cena de Norma Bengell nua na praia, a câmera rodando em torno dela, os jovens urbanos corrompidos pela ambição do lucro fácil e da falta de moral. Em 1963, o sertão substituíra as dunas e até mudara a textura do preto e branco, os filtros de Tony Rabatoni dando lugar à imagem mais agreste de Ricardo Aronovich. Os Fuzis fecha com Deus e o Diabo e Vidas Secas a trilogia que impôs ao mundo a estética da fome. Os filmes de Glauber e Nelson passaram em Cannes, em 1964 (e o segundo recebeu o prêmio do Office Catholique du Cinéma, o OCIC). O de Ruy venceu Berlim, o Urso de Prata de direção, no mesmo ano.

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O roteiro já existia antes mesmo que o diretor chegasse ao Brasil, mas Ruy sentiu que poderia ser transposto para o Nordeste. Acertou – com a cumplicidade de Miguel Torres na escrita. (O baiano Torres, ator e roteirista, foi figura decisiva na eclosão do Cinema Novo. Morreu aos 30 e poucos anos num acidente de jipe, durante uma filmagem.) Os cinenovistas queriam colocar o povo na tela, esperavam, quem sabe, o verdadeiro milagre cantado e decantado por Glauber Rocha na trilha de Deus e o Diabo na Terra do Sol – “O sertão vai virar mar”, “Mais fortes são os poderes do povo”. Ruy talvez tenha tido uma consciência mais realista ou radical de que os jovens autores brasileiros, afinal, retratavam o sertão para a classe deles. Trouxe o olhar de fora. O Gaúcho, interpretado pelo mesmo Átila Iório que deu vida a Fabiano em Vidas Secas, é um estranho, como o diretor, os soldados. Fracassa no intento de insuflar a luta armada em Os Fuzis, mas a realidade do filme ecoou, estética e politicamente, no Brasil e no mundo.

Ecoou muito na obra do próprio Ruy Guerra. Nos anos seguintes, ele fez filmes como Sweet Hunters (em inglês), Os Deuses e os Mortos, Mueda, Erêndira, Kuarup e o melhor deles, Estorvo, transcriado a partir do livro de Chico Buarque. Em 2003, e pelo conjunto da obra, Ruy ganhou o Prêmio Multiculural Estadão. Em 1976, em parceria com Nelson Xavier, que foi um dos soldados de Os Fuzis, fez outro de seus grandes filmes – A Queda. Treze anos depois de Os Fuzis, o soldado – Mário – largou a farda e trabalha nas obras do metrô do Rio. A falta de segurança provoca acidentes, a queda (e a morte) de um operário. Mário protesta com os colegas e entra em choque com o sogro empreiteiro. A consciência de classe, de quem ele é, pode arruinar seu futuro na empresa do sogro. Expor uma realidade dessas era um risco, sob a censura da ditadura, mas Ruy fez a passagem do sertanejo para o operário para continuar refletindo sobre a evolução do capitalismo brasileiro. O operário, como antes o sertanejo, se tornaria cada vez mais frequente – nas telas e no noticiário, com as greves do ABC no fim da década. A Queda recebeu o Urso de Prata em Berlim e a Margarida de Ouro outorgada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

 

Onde assistir:

  • Canal Brasil (Globosat Play)

 

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