Clássico do Dia: 'Rastros de Ódio' conta a tragédia de um homem solitário

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', e o escolhido da vez traz a parceria entre o diretor John Ford e o ator John Wayne

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Por Luiz Carlos Merten
3 min de leitura

Tem gente que não se conforma. No Academy Awards Handbook, John Harkness observa que o ano de 1956 foi um dos melhores da indústria de Hollywood, com grandes filmes que entraram para a história. Cita Sede de Viver, de Vincente Minnelli; O Homem Errado, de Alfred Hitchcock; Invasores de Corpos, de Don Siegel; Delírio de Loucura, de Nicholas Ray; e Rastros de Ódio, de John Ford. Poderia citar outros - O Planeta Proibido, de Fred M. Wilcox; O Homem do Braço de Ouro, de Otto Preminger; Palavras ao Vento, de Douglas Sirk. Mas o Ford serve. Com um filme assim tão grande para premiar, o que fez a Academia de Hollywood?

Escolheu A Volta ao Mundo em 80 Dias, de Michael Anderson, para premiar no Oscar, um filme até divertido, mas que não era melhor de coisa nenhuma. Pelo menos não venceu também como melhor direção. A estatueta foi para o George Stevens de Giant/Assim Caminha a Humanidade. The Searchers, os que procuram. Quem procura, e o quê? Ao longo de sua extraordinária carreira, Ford contou muitas epopeias de grupos. Mostrou personagens errantes - colonos, índios, mineradores, desempregados, negros integrados à Cavalaria. Todas essas odisseias lhe valeram o título de Homero de Hollywood. Na contramão dessa tendência, Rastros de Ódio conta a tragédia de um individualista. O filme começa com uma porta que se abre e por ela quem chega é Ethan Edwards/John Wayne. Vem da guerra e é acolhido na casa do irmão. Rapidamente, uma série de gestos, olhares mostra que Ethan é um outsider e que ama a cunhada. Talvez seja até correspondido, mas não seria um heroi fordiano, com a grandeza dos derrotados de Ford, se não estivesse pronto a renunciar pela felicidade do irmão.

John Wayne, no filme 'Rastros de Ódio' Foto: Warner Bros

Numa ausência de Ethan, os índios atacam (e destroem) a casa. Ele é atraído pela fumaça, e essa imagem emblemática está na origem de um clássico pop, o Star Wars de 1977, que virou Episódio IV. Morrem todos, menos a sobrinha, Debbie, que Ethan passa a procurar. Martin Pawley/Jeffrey Hunter segue com ele, talvez para evitar o pior. Porque o racista Ethan, ao descobrir que a sobrinha virou índia, mulher de um guerreiro, a procura para matar. Vira um anti-herói. Sombrio, sangrento. E tudo converge para o gran finale, quando Ethan cavalga em direção a Natalie Wood, que faz o papel (quando menina, a personagem é interpretada por sua irmã, Lana Wood). É uma cena emblemática, e o que ocorre - olha o spoiler - fez com que Jean-Luc Godard fizesse uma célebre declaração de amor ao astro Wayne, mesmo que, na eleição norte-americana de 1964, ele estivesse apoiando o candidato reacionário, o republicano Barry Goldwater, que prometia todo apoio ao establishment militar, que atolava a 'América' na Guerra do Vietnã. Goldwater perdeu, mas Lyndon B. Johnson, que sucedera John F. Kennedy e era o candidato dos democratas, intensificou a escalada da guerra, mas essa é outra história.

Terminada a caçada - a procura -, chega o tempo do descanso dos guerreiros. Debbie é readmitida na comunidade, Martin une-se a Laurie/Vera Miles e até o mais patético dos personagens fordianos, Moses/Hank Worden, ganha uma cadeira de balanço. A danação só prossegue para Ethan. Para o individualista, o herói solitário, não existe descanso. Assim como uma porta se abriu no começo, outra se fecha no final, e Ethan fica do lado de fora. O plano inspirou Steven Spielberg, que no desfecho de Guerra dos Mundos, de 2005, também deixou Tom Cruise fora da casa, depois de entregar o filho são e salvo à ex-mulher. Ford filmou em Monument Valley, a reserva no Utah que serviu como cenário para seus maiores westerns. Ele ainda faria outros filmes com Wayne, incluindo O Homem Que Matou o Facínora, de 1962, seu admirável enterro dos mitos do Velho Oeste. Se é verdade que Ford esculpiu a mitologia norte-americana pelo cinema, também é verdade que soube mostrar quanto isso custou em dor e vidas humanas.

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