Clássico do Dia: 'Os Demônios' levou terror ao convento e provocou a ira do Vaticano

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este do diretor Ken Russell, permeado de sexo e violência

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Por Luiz Carlos Merten
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7 min de leitura

Pouca gente deve lembrar-se de Jean Giono, autor de livros como O Homem Que Plantava Árvores e Um Hussardo no Telhado, e menos ainda de que, no final da 2.ª Guerra Mundial, ele chegou a ser preso, na França, acusado de colaboracionismo com os nazistas. Em 1961, Giono presidiu o júri de Cannes. Deu uma declaração que entrou para os anais do festival. Disse que não gostava de recepções, nem de filmes. Seu júri dividiu a Palma de Ouro entre Luís Buñuel (Viridiana) e Henri Colpi (Une Aussi Longue Absence). Outorgou seu prêmio especial ao polonês Jerzy Kawalerowicz, por Madre Joana dos Anjos.

O célebre episódio das freiras possessas de Loudun e uma possível influência sobre Glauber Rocha. Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro - a estrutura bipolar é característica dos maiores filmes do autor brasileiro. Antes dele, Kawalerowicz já criara os espaços do convento e da taverna, e entre eles o deserto, como expressões de uma indagação existencial e até metafísica. Exatamente dez anos depois o inglês Ken Russell colocou nas telas a sua versão do mesmo episódio. Russell era considerado na época o enfant terrible do cinema inglês. Incursionara pelo cinema de agentes secretos com O Cérebro de Um Bilhão de Dólares, foi para o Oscar com sua adaptaçãoo de D.H. Lawrence - Glenda Jackson ganhou o prêmio por Mulheres Apaixonadas, mas a cena que fica é a da briga de Alan Bates e Oliver Reed, ambos nus - e de novo com Glenda propôs a releitura da vida e obra de Tchaikovsky, ele como homossexual e sua mulher como ninfomaníaca em Delírio de Amor, primeira de uma série de biografias de grandes músicos que ele fez no cinema.

Ken Russel! Seu nome virara sinônimo de excesso. Vale lembrar o que escreve Jean Tulard no Dicionário de Cinema - “Nem contenção, nem comedimento - nenhuma preocupação com a exatidão ou em ser realista como nas biografias musicais hollywoodianas e soviéticas, mas um ponto de vista subjetivo e uma torrente de imagens que não deixa o espectador retomar o fôlego.” Tulard faz a ressalva - “Todo esse delírio é desordenado apenas aparentemente.” Numa entrevista em 1997, o diretor conta como tudo começou - “O produtor Robert Solo me enviou uma cópia da peça The Devils, de John Whiting, e um exemplar do livro de Aldous Huxley, de 1952, The Devils of Loudun, acrescidos de uma nota - 'Gostaria de fazer um filme?' Lembrava-me de haver visto a peça, mas não conhecia o livro. Li-o e achei o material muito rico, fiquei fisgado e imediatamente disse sim.” Mal o projeto foi anunciado e Russell foi contactado pelo ator Richard Johnson, que havia feito o protagonista masculino, Urbain Grandier, na montagem da peça de Whiting pela Royal Shakespeare Company, em 1961.

Russell já tinha um primeiro esboço do roteiro, que terminou assinando sozinho, embora se utilizando de diálogos da peça e do livro. Ele logo declinou da oferta de Johnson. Desde a primeira leitura visualizara Oliver Reed, o Gerald de Mulheres Apaixonadas, como Grandier. Chegou a oferecer o papel de Madre Joana a Glenda Jackson, esperando retomar a parceria com a grande atriz, e foi um choque quando ela declinou. Mais tarde, Glenda lamentou a decepção que causara em Russell, mas explicou que não queria fazer mais uma mulher neurótica e faminta por sexo. Russell voltou-se então para Vanessa Redgrave e ela aceitou ser a sua Madre Joana. Para muita gente, é o maior papel dessa atriz. Em sua autobiografia, ela chega a dizer que Os Demônios e A Carga da Brigada Ligeira, a versão de seu ex-marido, Tony Richardson, de 1968, são as duas obras de gênio do cinema britânico no pós-guerra. O projeto foi levado à United Artists, que distribuíra os filmes anteriores do diretor, mas a companhia recusou, considerando o material muito explosivo. Os Demônios foi produzido pela Warner.

Cena do filme 'Os Demônios', de Ken Russell. Foto: Warner Bros

Cabe lembrar que, no bojo das transformações comportamentais na década de 1960, o início dos 70 assistiu a um florescimento do cinema erótico. Surgiram A Laranja Mecânica, Último Tango em Paris, W.R. - Os Mistérios do Organismo, O Porteiro da Noite, Emmanuelle, culminando no sexo explícito de Nagisa Oshima em seu díptico, O Império dos Sentidos e O Império das Paixões. O pornô ganhou as telas e criou suas estrelas, Linda Lovelace (Garganta Profunda) e Georgina Spelvin (O Diabo na Carne de Miss Jones). Houve até um Hamlet ('To fuck or not to fuck'). Mas o caso de Os Demônios era especial, e por dois motivos. O filme baseava-se numa história real - e o livro de Huxley havia sido definido como romance documentário, ou de não ficção. Havia, ainda, a questão da Igreja, e o Vaticano tentou impedir a exibição do filme no Festival de Veneza, chegando a ameaçar de excomunhão Russell e o diretor da mostra.

Para se manter fiel à história, Os Demônios passa-se antes do filme de Kawalerowicz. Na verdade, termina quando começa o clássico polonês - Madre Joana desatinada, num amplo espaço deserto que expõe toda a sua confusão interior. Na versão de Russell, o Cardeal Richelieu, que está consolidando seu poder na França, ganha o apoio do rei para exigir que o padre Grandier derrube os muros fortificados da cidade de Loudun. Richelieu é a eminência parda por trás do rei, e seu propósito é unificar o reino. Grandier resiste e é acusado de bruxaria. Embora religioso e preso ao voto de castidade, o padre possui uma vida sexual ativa. O governo central envia um exorcista para liberar as monjas ursulinas do convento de Loudun, que estariam possuídas pelo demônio - e, mais importante, a madre afirma haver feito sexo com o padre.

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Apesar do contexto histórico bem delineado - com o tema do poder -, Russell em momento algum aproximou-se de seu material com a prudência de Huxley e Whiting. O que o atraía era justamente o oposto, a possibilidade de fazer um granguignol operístico, permeado de sexo e violência. Chegou a dizer que uma frase de Huxley havia sido decisiva para que ele quisesse fazer o filme. “As esposas de Cristo transformaram-se em performers de cabaré, e atrações de circo (freaks).” Com a cumplicidade do futuro diretor Derek Jarman, contratado como diretor de arte, criou cenários grandiosos, repletos de detalhes anacrônicos, para representar o convento. O modelo, segundo Jarman, teria sido Metrópolis, o clássico futurista de Fritz Lang, com o objetivo de criar um visual abstrato e intemporal. Numa cena, o Cristo crucificado metamorfoseia-se no padre Grandier para tentar Madre Joana. Em outra, mais polêmica, o rei Luís XIII, cercado de eunucos, travestis e cortesãs, visita o convento e participa de uma missa profana, durante a qual as freiras nuas, ou seminuas, participam de masturbações coletivas e se apropriam de um Cristo de madeira para sodomizar o rancoroso e repressivo Padre Barré, que Russell visualizou como um sósia de John Lennon. Essa cena orgiástica - The Christ rape - foi cortada, ou pelo menos atenuada, em diversos países. Russell foi chamado de blasfemo e herege, e Oliver Reed e Vanessa Redgrave- na época já casada com Franco Nero - foram proibidos de entrar na Itália até 1974.

Na visão de Russell, o Padre Grandier e a Madre Joana são inimigos mortais que potencializam seus desejos autodestrutivos, e é nesse sentido que Os Demônios é uma prequel para o filme de Kawalerowicz. O autor polonês baseou-se nos quatro últimos capítulos do livro de Huxley, depois que Grandier é torturado e morre na fogueira. O padre, no Kawalerowicz, é outro - Surin. No Russell, o rei e Richelieu são projeções invertidas um do outro. São representados como drag queens, e na cena de abertura, uma recriação da Vênus de Botticelli, o rei incorpora a deusa. Esse clima de perversão da corte antecipa A Favorita, do grego Yorgos Lanthimos, mostrando o rei como um títere do cardeal, que usa do poder absoluto, e qualquer outro meio, para atingir seu objetivo - a nova França, na qual Igreja e Estado serão uma coisa só.

Nos anos e décadas seguintes, trabalhando quase sempre com biografias de compositores, Russell nunca deixou de surpreender com a potência visual de seu cinema. Joseph Lanza chamou seu livro Ken Russell and His Films de Phallic Frenzy, mostrando na capa uma mulher de boca escancarada para abrigar uma enorme banana. Pauline Kael, a famosa crítica norte-americana, tinha verdadeira ojeriza pelo cinema do diretor. Dizia que seus filmes são homoeroticos no estilo, mas do ponto de vista dramático são bizarramente anti-homossexuais. Longe de ser uma unanimidade, ele foi importante por antecipar questões de gênero, antes que se tornassem viscerais no cinema atual, mas desconcertava pelo barroco exacerbado de suas mise-en-scènes.

No limite, o personagem de Russell cria sempre um mundo de sonhos e desejos - e a fluidez da música lhe permitia liberar a imaginação - que se destroi em contato com a dura realidade. Só como curiosidade, Russell deveria dirigir Evita com Liza Minnelli, mas divergências criativas entre o diretor e a estrela impediram o projeto de decolar e o filme terminou sendo feito por Alan Parker, com Madonna, em 1996. No período mais fecundo de sua carreira, ele fazia de dois a três filmes por ano. Em 2001, num depoimento gravado, admitiu que talvez estivesse totalmente louco, atormentado por suas fantasias. “As pessoas pensam que já morri, e meus projetos não encontram mais ninguém interessado em bancá-los.” Morreu em 2011, aos 84 anos.

Onde assistir:

  • À venda em DVD

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