Clássico do Dia: 'O Poderoso Chefão', uma trilogia de notável coerência, ética e estética

O crítico do 'Estadão' Luiz Carlos Merten seleciona obras valiosas do cinema; os cultuados filmes dirigidos por Coppola contam com as marcantes atuações de Marlon Brando e Al Pacino

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Por Luiz Carlos Merten
8 min de leitura

É um daqueles casos em que as preças demoraram para se ncaixar no quebra-cabeças. Na série Clássico do Dia, já houve filmes como Casablanca e O Intrépido General Custer, em que mudaram diretor e elenco. Como teriam sido, se o planejamento inicial tivesse sido mantido? Jamais saberemos, mas com certeza não seriam esses clássicos. Poderiam até ser outros. Ocorreu com O Poderoso Chefão. Por volta de 1970, a Paramount era um estúdio falido. Precisava desesperadamente de um grande sucesso. Robert Evans, catapultado ao cargo de diretor geral de produção, conseguiu transformar Love Story num megassucesso.

Na origem do filme estava o livro - best seller - de Erich Segal. Se deu certo uma vez, não custa tentar de novo. A Paramount anunciou, com todas as fanfarras, a produção do maior filme de gangsteres de todos os tempos, adaptado do livro de Mario Puzo. The Godfather, literalmente O Padrinho - no Brasil, O Poderoso Chefão. Adquiridos os direitos, começou a batalha por um diretor. O primeiro cogitado foi Sergio Leone, mas ele declinou poque queria fazer o próprio filme de gângsteres - Era Uma Vez na América. Peter Bogdanovich e Costa-Gavras também foram sondados e disseram não. A cúpula da Paramount passou a buscar um diretor ítalo-americano. Francis Ford Coppola foi chamado e disse não. Temia que a Máfia e a violência fossem glorificadas. Ao fim de muitas reuniões de trabalho com Puzo e Robert Evans, Coppola convenceu-se de que seria possível abordar o tema como metáfora do capitalismo norte-americano.

Escreveu o roteiro com Puzo, e o estúdio, que monitorava o andamento do projeto, cobrava mais emoção e mais violência, sob pena de decepcionar o público. Começou outra batalha. A Paramount via Ernest Borgnine no papel de Don Vito Corleone. Coppola discordava. Da forma como via o personagem - shakespeariano, maior que a vida – queria um Laurence Olivier, ou um Marlon Brando. Olivier chegou a ser contactado, mas seu assistente respondeu que ele estava doente, praticamente morrrendo, e não poderia entrar numa filmagem desgastante. Como desculpa valeu, mas talvez não correspondesse à realidade. Olivier sobreviveu mais quase 20 anos, após o convite. Marlon Brando, não. O estúdio não se esquecera das dificuldades que teve com ele em A Face Oculta, quando Brando demitiu o diretor Stanley Kubrick e assumiu a realização, aumentando o orçamento e desrespeitando prazos. Coppola negociou e conseguiu que Brando fizesse um teste. Aprovado, ele teve de firmar um acordo pelo qual pagaria multa, caso retardasse o cronograma.

Resolvido o problema do chefão, restava o do filho, Michael, que manobra para assumir o controle do império do pai, quando Don Vito quase morre. A Paramount sugeriu Robert Redford, ou Ryan O'Neal, dois protótipos de galãs wasps, de pele e olhos claros. Coppola queria um ítalo-americano. Al Pacino saiu melhor que a encomenda e teve a extraordinária carreira que todo cinéfilo sabe. A filmagem durou de março a agosto de 1971 - foram 77 dias, uma semana menos que os 83 previstos no planejamento. Começa com a festa de casamento de Connie e a cerimônia do beija-mão, quando os convidados vão apresentar seus respeitos a Don Vito ou pleitear sua interferência em assuntos que os afligem. Johnny Fontane/Al Martino, o cantor que anima a festa, pede ajuda ao padrinho para dobrar o produtor que está empatando sua carreira.

Cena do filme 'O Poderoso Chefão', com Marlon Brando Foto: Paramount Pictures

Johnny é inspirado em Frank Sinatra, e o recado que Don Vito manda ao produtor não poderia ser mais brutal - ele acorda com a cabeça decepada de seu alazão de US$ 500 mil na cama. Coppola exigia uma cabeça de verdade. Associações de proteção a animais mobilizaram-se contra, mas ele teve sua cabeça, garantida por uma companhia que preparava ração para cães. Partindo da comemoração, o filme logo estabelece seu plano - a luta pelo poder numa democracia étnica. Don Vito sofre um ataque do coração e, no hospital, Michael consegue frustrar um atentado contra a vida do pai.

São três filhos - Sonny, esquentado demais para conduzir os negócios da família; Fredo, débil demais, um filhinho de mamãe; e Michael, que se revela um estrategista frio. Herói de guerra, realiza ele próprio a execução do policial corrupto McCluskey. Com a cabeça a prêmio, foge para a Itália. Casa-se, mas a mulher morre num atentado e Michael regressa à América para acertar contas e consolidar o poder da família Corleone. Para isso é preciso um massacre - a morte dos inimigos fornece o gran finale, uma sucessão de assassinatos enquanto Michael, na igreja, torna-se padrinho da filha da irmã. A essa altura ele já reatou com a namorada americana, e Kay (Diane Keaton) torna-se sua mulher, mas ela não se sujeita ao modelo de dominação masculina da organização. O final, do ponto de vista de Kay, mostra a repetição do beija-mão do princípio, mas agora o chefão, o padrinho, é Michael. Com quase três horas de duração - 175min -, O Poderoso Chefão oferece uma das mais completas (perfeitas?) lições de cinema narrativo da história. Coppola e Puzo em nenhum momento perdem o controle das situações, e dos numerosos personagens.

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Al Pacino no filme 'O Poderoso Chefão Parte 2' Foto: Paramount Pictures

Entre o casamento, no começo, e o massacre, no fecho, o filme é pródigo em grandes cenas. Algumas - Sonny batendo no marido abusivo da irmã e sendo atraído à cilada para ser fuzilado; a morte de Don Vito; a mortandade. O Poderoso Chefão venceu os Oscars de melhor filme, roteiro adaptado e ator, Marlon Brando. Como raras vezes ocorreu ao longo da história, a Academia não honrou a escolha do Director's Guild - Coppola - e atribuiu a estatueta da categoria a Bob Fosse, por Cabaret. A fotografia de Gordon Willis e a trilha de Nino Rota mereciam prêmios, mas não levaram. O compositor alimentou-se da sua trilha para o clássico Rocco e Seus Irmãos, de Luchino Visconti. Coincidência ou não, o repórter sempre identificou em Michael Corleone o idealismo de Rocco no Visconti, e ambos são arrastados pela violência do mundo (o crime, para um, o boxe, para outro). O próprio Coppola disse que nunca pensou dessa maneira, mas considerava lisonjeira a comparação do repórter - Rocco, concorda ele, é um dos grandes filmes do cinema. É sobre família, lealdade - como o primeiro Chefão.

Depois que o filme arrebentou na bilheteria e foi prestigiado no Oscar, Coppola e Puzo foram cooptados a fazer uma sequência. Surgiu O Poderoso Chefão Parte II, que venceu os principais Oscars de 1974 - melhor filme, direção, roteiro adaptado, ator coadjuvante (Robert De Niro), etc. A originalidade do conceito desse segundo filme está no fato de que Coppola e Puzo contam duas histórias paralelas - a do jovem Vito, no passado, mostrando como ele se tornou chefão, e a de Michael, no presente, consolidando seu poder na organização, e isso significa enfrentar uma investigação do Congresso e eliminar integrantes da própria família (Fredo). Na parte 2 está o diálogo do advogado da família, o conseglieri Tom Hagen (Robert Duvall), em que ele detalha a organização militar da Máfia/Cosa Nostra com base no Império Romano. Também mostra as famílias de mafiosos estendendo seu império em Cuba. Numa cena emblemática, fatiam um bolo que tem a forma da ilha, cada um reivindicando seu pedaço, mas ocorre a revolução de Fidel Castro, que coloca os gringos a correr.

Michael, mais uma vez, impõe-se a seus inimigos, mas o filme termina com a imagem dele como um velho solitário. Vitorioso, ou derrotado? O dilema retorna no 3, que Coppola e Puzo realizaram em 1990, colocando no centro da história o escândalo do Banco Ambrosiano, do Vaticano. Michael, cada vez mais legitimado, lava o dinheiro do crime no banco da Igreja. Ele volta às origens, à Sicília, preparando seu sucessor, o sobrinho Vicenzo/Vinny, filho ilegítimo do irmão, Sonny. O Poderodso Chefão Parte III termina com um novo massacre, mas em vez do batizado, na Igreja, como no primeiro filme, a matança ocorre durante a encenação da ópera Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni.

Cena de 'O Poderoso Chefão Parte 3', com Al Pacino Foto: Paramount Pictures

Há controvérsia em relação a esse terceiro filme, que não repetiu o sucesso de público e crítica dos anteriores, mas, de certa forma, é o mais pungente de todos. A trama inclui (elucida?) até o que teria sido o assassinato do papa João Paulo I e, no plano mais íntimo, Michael e Kay reaproximam-se porque o filho deles é o diretor da ópera dentro do filme. Coppola manteve sempre o núcleo central de elenco (Al Pacino, Diane Keaton, Robert Duvall, Talia Shire), agregando novos nomes segundo a exigência de cada novo filme. Ele pretendia fazer Parte III com Winona Ryder, mas no último momento ela foi substituída pela filha do diretor, Sofia Coppola, no papel da filha de Michael (e Sofia já havia sido o bebê no batizado do primeiro Chefão). No tiroteio na escadaria da Ópera - ecos de O Encouraçado Potemkin, de Sergei M. Eisenstein -, a garota é atingida, e morre. Filmar a morte da filha, mesmo que fictícia - e simbólica -, confere uma dimensão particular à tragédia de Parte III. Michael, o velho Pacino, urra feito bicho ferido. Destituído de seu poder, como Vito no primeiro filme, é apenas um velho patético naquele jardim que cheira a morte. Nem todo o poder do mundo preenche o vazio que corrói o coração de um homem. Há algo de fordiano nessa confissão final de derrota.

Na tentativa de atingir o pai, a crítica demoliu a filha. Sofia recebeu as piores críticas jamais atribuídas a uma jovem atriz. Desistiu da carreira frente às câmeras e virou a diretora - autora - que os cinéfilos sabem. A cada um o direito de escolher seu melhor Chefão. O que não cabe dúvida é que os três filmes compõem um bloco de notável coerência, ética e estética. Uma saga como a da família Corleone nunca houve, e nunca haverá. O Poderoso Chefão Parte 2 fez história como única continuação a vencer o Oscar de melhor filme. Pensados conjuntamente, os três filmes se tornam progressivamente mais sombrios, enquanto a corrupção gerada pelo poder resulta em completa degradação moral. Coppola, que iniciara a década de 1970 como um cineasta promissor, fechou-a com a ópera antimilitarista de Apocalypse Now, ou como a 'América' enterrou-se na guerra bilionária do Vietnã - e terminou perdendo para as táticas de guerrilha dos vietcongues. Hoje, sabe-se que Coppola quase foi demitido do primeiro Chefão e, falido, escrevia febrilmente o roteiro de O Grande Gatsaby - que virou filme de Jack Clayton -, enquanto The Godfather não estreava.

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O sucesso, que superou toda expectativa, levou a Paramount a fazer-lhe uma oferta irrecusável - Parte 2 -, com direito a participação nos lucros. Ofertas irrecusáveis é o que Don Vito e Don Michael fazem a seus inimigos ao longo dos 547 (175 + 202 + 170) minutos dos três filmes. Coppola ganhou rios de dinheiro com Parte 2 e empatou tudo no seu épico sobre o Vietnã. Iniciou os 80 falido, de novo, mas nunca desistiu de recomeçar - com o vídeo de O Fundo do Coração, de 1982. O gosto pela experimentação levou-o, seis anos mais tarde, a Tucker - Um Homem e Seu Sonho, sobre o inventor que criou o carro do futuro e não conseguiu furar o bloqueio das grandes montadoras. Logo veio Parte III. Como 'autor' foi sempre assombrado pelos espectros do sucesso e do fracasso. Michael, num certo sentido, sempre foi ele.

Os três filmes estão disponíveis no streaming do Telecine e no YouTube.

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