Clássico do Dia: 'O Padre e a Moça' é de uma geração de artistas que quis pensar o País pelo cinema

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado'; É quase impossível admitir que Joaquim Pedro, que filmou Drummond seja o mesmo que adaptou Mário de Andrade

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Existe o filme de Joaquim Pedro de Andrade, O Padre e a Moça, e o poema de Carlos Drummond de Andrade, que lhe deu origem. Muito já se escreveu – Liturgia da Pedra, por Meire Oliveira Silva -, que a descrição do amor por Joaquim Pedro é concomitante à morte, como em Drummond, mas que o cineasta a desloca para um momento anterior, de certa para tornar mais cinematográfica sua adaptação. “Lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre, diabo feito gente, sagrado”.

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O poema narra esse amor profano, impossível.

“O padre furtou a moça, fugiu Pedras caem no padre, deslizam A moça grudou no padre, vira sombra, aragem matinal soprando no padre. Ninguém prende aqueles dois, Aquele um Negro amor de rendas brancas.”

O mineiro Joaquim Pedro já era diretor de renome quando o filme surgiu, em 1965 – contemporâneo de A Falecida, de Leon Hirszman, e Menino de Engenho, de Walter Lima Jr. Ele começou no curta, focado na obra de destacadas figuras da literatura. Abordou Gilberto Freyre em O Mestre de Apicucos, Manuel Bandeira em O Poeta do Castelo. Desse, celebrou Passárgada - “Lá sou amigo do rei/terei a mulher que quero/na cama que escolherei.” Esse 'lá', miticamente procurado e nunca encontrado, talvez seja a essência da obra de Joaquim Pedro, um deslocamento do qual quase ninguém dá conta na tentativa de compreensão do autor. Em 1960, fez, coassinando o roteiro com Domingos Oliveira, o curta Couro de Gato, sobre meninos que caçam gatos nos morros do Rio para fornecer a matéria-prima na confecção das cuícas para o carnaval. Couro de Gato ganhou fama no País e até no exterior. Terminou integrado a Cinco Vezes Favela, a produção do Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes, de 1962, que foi uma espécie de manifesto do Cinema Novo.

Joaquim Pedro ainda fez, em 1963, seu filme mais estranho – Garrincha, Alegria do Povo, em que o craque é retratado de longe e até desestruturado numa montagem eisensteiniana. (Parece mais um desdobramento do experimento de Hirszman em Cinco Vezes Favela, o episódio Pedreira de São Diogo. Como alegria do povo, Garrincha é, para o diretor, o emblema da alienação que o futebol provoca. É um filme muito interessante, mas de maneira alguma prepara o público para O Padre e a Moça. O poema de Drummond, o negro amor das rendas brancas. Paulo José e Helena Ignez. Ele ainda não havia feito Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos Oliveira. Ela, que fora mulher de Glauber Rocha, ainda não encontrara em Rogério Sganzerla, na arte como na vida o parceritro ideal e o autor de seus maiores papéis – Janete Jane em O Bandido da Luz Vermelha, Ângela Carne e Osso em A Mulher de Todos.

É quase impossível admitir que Joaquim Pedro, que filmou Drummond seja o mesmo que adaptou Mário de Andrade Foto: DIFILM

O padre ama a moça, que retribui. Fogem para viver seu amor profano, que é condenado pela sociedade repressora. Negro amor. Joaquim Pedro cria pontos de vista. Primeiro de tudo é o som, um nome – Mariana. O padre vê passar a moça, a moça liga-se no padre. O primeiro movimento é o olhar. Depois o gesto. O padre chega a uma comunidade decadente de mineradores para dar a extrema-unção a um homem que está morrendo. É aí que se desenha o básico. A filha de um garimpeiro foi dada em criação para um comercisante, mas ele a quer como esposa. Marca-se o casamento, mas o padre e a moça já estão fisgados.Vão desafiar a moral e os bons costumes da comunidade. Do próprio regime militar recém instaurado, em 1964, e que zelava, oficialmente, pelos valores religiosos das sociedade.

O poema é de 1962, do livro Lições das Coisas. Começa com a fuga. Lá vai o padre, seu tormento, o desejo, a concretização do amor e do sexo, a fuga, a comunidade ultrajada, o escondereijo na gruta. É um clima pesado e sombrio, escuro como a noite. A parceria de Joaquim Pedro com seu excepcional dirertor de fotografia, Mário Carneiro, um poeta da luz natural, cria esse mundo convulsionado de luz e sombra, movimento e imobilidade. E aqui é importante observar que, embora integrado ao Cinema Novo, como Couro de Gato, o filme não se inscreve na estética da fome que Glauber, Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra vinham propondo. Tem mais a ver com A Grande Cidade, de Cacá Diegues, do ano seguinte, com a ressalva de que um se passa na metrópole e outro no meio rural. (Mineiro nascido no Rio, Joaquim Pedro foi tão influenciado por Drummond quanto pela lenda da mulher do padre e da mula sem cabeça.) Mas todos, e nisso ele era cinenovista, estavam comprometidos em colocar na tela a cara do Brasil.

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O Cinema Novo e Joaquim Pedro. Com certeza, ele representou sempre uma vertente à parte. A mineiridade era coisa ancestral. Existem duas grandes trilhas no cinema de Joaquim Pedro. A mineira, intimista, para dentro, e a tropicalista, ruidosa, para fora. É quase impossível admitir que o homem que filmou Drummond seja o mesmo que adaptou Mário de Andrade, a rapsódia antropofágica de Macunaíma. São filmes que se opõem, e não apenas na forma, mas também são coerentes na medida em que, na obra de Joaquim Pedro, o grande tema talvez seja – sempre! - os brasileiros devorados pelo Brasil.

Nos anos 1960, houve aquela geração de artistas que quis pensar o País pelo cinema. Não apenas pensar – mudar. O esforço não apenas é válido, como necessário, mas os personagens, como os de John Huston – uma comparação possível, até pelo ecletismo da estética -, estão condenados só fracasso. O menino do Gato, Garrincha, o Padre, o Tiradentes de Os Inconfidentes. Macunaíma talvez se salve pela malícia. Cada um por si e Deus contra todos. A vertente intimista vai de Couro de Gato a Os Inconfidentes, atravessa O Padre e a Moça. A tropicalista, ou melhor dizendo, antropofágica, de Macunaíma a O Homem do Pau Brasil, atravessando o episódio Vereda Tropical, de Contos Eróticos. A radicalização da transgressão. O homem que faz sexo com melancia, a voz suave de Carlos Galhardo. Eventualmente, ou pontualmente, tocam-se - em Os Inconfidentes. De novo, a fonte da literatura. Cecília Meireles, o Romanceiro da Inconfidência. Os Autos da Devassa. Os escritos de Tomás Antônio Gonzaga, de Cláudio Manuel da Costa.

José Wilker, como Tiradentes, declama a liberdade como num filme do franco-alemão Jean-Marie Straub. Os planos de sua carne dilacerada dão bem a medida de um personagem devorado pela covardia e pelo entreguismo do seu tempo. O canibalismo institucional e, em 1972, quando Joaquim Pedro apresentou seu filme, o regime militar comemorava, com pompa e circunstância, o sequicentenário da independência. Ele navegava na contracorrente, trazendo Os Inconfidentes até o presente – da época – para filmar as comemorações do 21 de abril em Ouro Preto. Estava contra, como talvez tenha estado sempre. Lá vai o padre, atormentado, diabo feito homem. Dentro do Cinema Novo, ao qual costuma ser integrado, às vezes à força, Joaquim Pedro foi e será o grande solitário. Morreu em 1988, aos 56 anos.

Assista ao filme:

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