Clássico do Dia: 'O Boulevard do Crime' está no topo dos melhores filmes franceses

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este que marca o que é considerado o ponto alto da parceria entre Jacques Prévert e Marcel Carné

PUBLICIDADE

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Críticos como Jean-Luc Godard e François Truffaut, antes que virassem os autores da nouvelle vague que todo cinéfilo conhece, não tinham muito apreço por Les Enfants du Paradis.

PUBLICIDADE

O longa escrito por Jacques Prévert e dirigido por Marcel Carné marca o que é considerado o ponto alto da parceria entre os dois, na tendência chamada de realismo poético. No Brasil, foi lançado como O Boulevard do Crime. O título tem a ver com o fato de se passar no Boulevard du Temple, em Paris, que era conhecido como Boulevard du Crime, no século 19. A produção é de 1943, o lançamento foi em 1945 e, décadas mais tarde, venceu uma enquete e foi parar no topo da lista para escolher os melhores filmes franceses de todos os tempos. Foi simplesmente 'o' melhor.

Hoje em dia, parece difícil acreditar que um filme daquele tamanho, e com aquele grau de reconstituição de época, possa ter sido realizado na França sob a ocupação nazista. Havia artistas e artesãos judeus que trabalhavam clandestinos e, em cenas que envolviam comida, conta a lenda que a maior dificuldade do diretor Carné era evitar que a equipe faminta, e os extras, devorassem tudo antes que ele gritasse 'Corta!' Cenas elaboradas tiveram de ser rodadas uma única vez, por causa dos recursos limitados, e do tempo. O risco era sempre o de uma inspeção dos nazistas. Tudo isso, é claro, contribuiu para a aura do filme.

Arletty, Jean-Louis Barrault, e Pierre Brasseur em 'O Boulevard do Crime'. Foto: Pathé Consortium Cinéma

Jean Renoir fez a sua celebração do teatro no cinema em Le Carrosse d”or, com Anna Magnani, em 1952. Truffaut fez a dele em O Último Metrô, de 1980, com Catherine Deneuve, que foi seu maior sucesso de público. Mas nada se compara a Les Enfants du Paradis. O 'paraíso' do título é aquele ponto mais alto, pelo qual se paga o ingresso mais barato, nos teatros tradicionais. O teatro é a própria razão de ser do filme – o teatro como arte da representação. Garance, integrante de uma trupe, é acusada de roubo. É salva pela performance silenciosa do mímico Debureau, que a ama. Mas Garance tem muitos pretendentes, incluindo mais ricos. A galeria de personagens inclui o ator shapeariano Lemaitre, um conde, um assassino filosófico, o catador de papeis delator e a filha do administrador do teatro.

Em Os Visitantes da Noite, seu filme precedente, Carné e Prévert já se haviam voltado para o tema da morte, por meio de uma lenda medieval – o coração de duas estátuas, batendo, era a prova da permanência do amor. No Boulevard, o mito é fornecido pela mais conhecida história de amor de carnaval, imortalizada pela Commedia dell'Arte, o eterno triângulo formado por Pierrô (Deburau), Arlequim (Lemaitre) e Colombina (Garance). Entre o Pierrô apaixonado e o malandro Arlequim, com quem ficará o coração da bela? Na commedia dell'arte, a trama era quase sempre encenada na rua, com muita improvisação e intervalos para o acréscimo de acrobatas e humoristas. Carné e Prévert transformaram a fábula em tragédia para retratar a França do seu tempo.

A eterna disputa entre Pierrô e Arlequim é agravada porque o Destino, representado pelo amante rico de Garance, Lacenaire – o conde -, está sempre separando os casais. De forma inteligente, Prévert alimenta-se de Victor Hugo, Eugene Sue e Honoré de Balzac, e o roteiro incorpora elementos de Os Miseráveis, Os Mistérios de Paris e O Esplendor e a Miséria das Cortesãs. Talvez, revisto hoje, o filme pareça um tanto solene e até declamado, mas, na verdade, e com base nas exigências dramáticas do roteiro, Carné faz uma espécie de viagem pelos diferentes estilos de interpretação. (Pauline Kael, num texto célebre, dizia que identificava cinco.)

A direção de arte (de Alexander Trauner) e o elenco, especialmente Jean-Louis Barrault e Arletty, como Debureau e Garance, contribuíram muito para a estatura do filme. Arletty tem algo de Garbo, parece uma esfinge. Essa atriz misteriosa teve uma vida complicada. Foi presa como colaboracionista, e realmente teve um affair tórrido com um oficial da Luftwaffe, durante a ocupação. Defendeu-se dizendo que seu coração era francês, mas 'le cul”, o sexo (numa definição mais vulgar), era internacional. Nos anos 1950 e 60 foi perdendo progressivamente a visão, até ficar cega.

Publicidade

Onde assistir:

  • iTunes

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.