Clássico do Dia: 'Meu Ódio Será Sua Herança' provocou um misto de fascinação e horror

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado'; o western nunca mais foi o mesmo depois do longa de Sam Peckinpah

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Por Luiz Carlos Merten
6 min de leitura

No começo dos anos 1970, Sam Peckinpah deu uma polêmica entrevista à Playboy. Comparou-se a uma p... Disse que respeitava as profissionais do sexo e sua dedicação ao trabalho. Estava numa fase de fazer o que conseguia, não necessariamente o que queria. Mas fazia do seu jeito, como a prostituta que, tendo de proporcionar satisfação ao cliente, tenta tirar o próprio proveito. Como tudo o que Peckinpah dizia e fazia - a violência sexual de The Straw Dogs/Sob o Domínio do Medo, de 1971, foi considerada repulsiva -, a declaração à Playboy virou prova de machismo. 

Descendente de índios paiutes que falavam uma língua uto-asteca, Peckinpah viveu e morreu com intensidade. Poderia ter sido um daqueles personagens desajustados nos próprios filmes. Iniciou-se no cinema com Don Siegel - foi redator dos diálogos de Rebelião no Presídio e Vampiros de Almas, e no segundo teve também uma pequena participação como ator (no posto de gasolina). Ainda nos anos 1950, fez certo nome como escritor e diretor de episódios para séries de faroestes na TV. Estreou no cinema com uma obra do gênero, mas The Deadly Companions, literalmente Os Parceiros Mortais, com Brian Keith e Maureen O'Hara - no Brasil, virou O Homem Que Eu Devia Odiar -, foi considerado muito violento, sendo remontado pelos produtores. Um mau começo, mas logo em seguida, com Pistoleiros do Entardecer, com Randolph Scott e Dan Duryea, de 1962, no mesmo ano de O Homem Que Matou o Facínora -, incorporou-se à tendência do crepúsculo do western do próprio mestre John Ford. Novos problemas - foi afastado da produção de A Mesa do Diabo, de 1964, com Steve McQueen, e Major Dundee/Juramento de Vingança, com Charlton Heston e Richard Harris, também foi remontado pelos produtores.

A crítica hesitava. Mesmo com a abordagem do sexo e da violência mudando na tela, graças à flexibilização do Código Hays, que estabelecia a (auto)censura na indústria, Peckinpah parecia violento demais. Criticava os mitos, mas o que dá força a Pistoleiros do Entardecer é o sopro lírico e a Juramento de Vingança é a dialética entre os oficiais do Norte (Heston) e do Sul (Harris), no contexto pós-Guerra Civil, e é pelo segundo que torce o espectador. Foi aí que, em 1968, Peckinpah tomou de assalto as telas de todo o mundo com o western mais convulsivo da década. The Wild Bunch, o Bando Selvagem/Violento. Por mais que o título original já expusesse o conceito, pareceu insuficiente ou pouco chamativo, e no Brasil a Warner rebatizou-o como Meu Ódio Será Sua Herança.

Cena do filme 'Meu Ódio Será Sua Herança', de Sam Peckinpah Foto: Warner Bros

Já no começo, Peckinpah coloca-se na contramão do western clássico representado por Os Brutos Também Amam, de George Stevens, de 1953. Lá, o pistoleiro interpretado por Alan Ladd, Shane, era visto pelos olhos do menino que o idolatrava. Peckinpah abre o filme dele com a imagem de crianças brincando, uma brincadeira selvagem. Jogam formigas vermelhas sobre um escorpião, tocam fogo no buraco. O ponto de vista muda para mostrar a chegada de Pike Bishop e seu bando. Estamos no Texas, em 1913, e o grupo de seis entra em cena com uniformes de federais. Bandidos disfarçados de mocinhos - Pike/William Holden, o leal Ernest Borgnine, os irmãos reclamões e briguentos Ben Johnson e Warren Oates, o jovem Mexican/Jaime Sánchez e Edmund O'Brien, que já foi pistoleiro temido. A esperá-los estão os caçadores de recompensas de Deke Thornton/Robert Ryan, que um dia foi aliado de Pike. Deke e os seus são os pretensos mocinhos que agem como bandidos. Desencadeiam a fuzilaria que atinge a passeata pela temperança - contra as bebidas alcoólicas - que reúne boa parte da população. O banho de sangue é inevitável.

Fracassado o assalto ao banco, Pike e o bando planejam o que será o último roubo. Estão cansados, no fim da linha. O roubo será a um trem carregado de armas e munições, e a ideia é vender o carregamento a um comandante mexicano, Mapache, interpretado pelo lendário diretor mexicano Emilio Fernández, famoso pela parceria com o fotógrafo Gabriel Figueroa. Juntos, nos anos 1940 e 50, colocaram o México no mapa do cinema mundial com seus filmes carregados de erotismo e beleza visual. O tempo do Wild Bunch já passou e o sexteto tem consciência disso. Mas ao descobrir que Mapache é o terror das montanhas de onde vem o Mexican, o grupo abre mão do dinheiro e aposta na redenção. Morrem com glória numa batalha sangrenta (e suicida) contra Mapache e seus homens, para libertar a população. Não são mais os bastardos inglórios do começo. A cena quando chegam ao vilarejo do Mexican é impressionante. Há respeito, mas também medo no olhar da população que vê passar esses homens como se fossem deuses, ou diabos. Estão prontos para matar ou morrer. São filhotes de Ford, carregam a grandeza dos derrotados. Peckinpah sabia ser brutal, mas a velha p... recusava-se a perder a ternura. Os momentos mais pungentes, prévios ao massacre final, mostram a despedida. Pike olhando através da garrafa. O último trago, a última mulher. Até os fdp sabem ser românticos.

O filme provocou um misto de fascinação e horror porque Peckinpah, mais até que nos westerns anteriores, foi fundo na violência. Em busca do realismo, filmou as explosões, as mortes em câmera lenta, para que o espectador sentisse o impacto dos tiros. Essa abordagem - estética ou estetizante? - animou acalorados debates. Peckinpah estaria celebrando ou criticando a violência? O que não resta dúvida é que ele, como outro grande da época, Arthur Penn - de Uma Rajada de Balas/Bonnie & Clyde, de 1967 -, acreditava que os mitos fundadores da América (a conquista do Oeste, as guerras contra os índios, os pistoleiros, etc) haviam forjado essa deformação estrutural, um país que só consegue resolver seus conflitos por meio da violência.

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E é preciso pensar na época. Contextualizando - quando esses filmes estrearam, o de Penn, o de Peckinpah, os EUA estavam atolados no Vietnã. Foi a primeira guerra televisionada, e as imagens de destruição eram servidas no café da manhã, no jantar. A violência, as mortes estavam sendo banalizadas, integradas ao cotidiano. O que esses autores faziam era radicalizar, confrontar o público com a barbárie. A par do realismo, mas era mesmo só realismo?, a grande sacada de Peckinpah em seu dramma (no sentio grego) foi construir a mística do grupo. Do Bunch. Desde o começo da década, o cinema vinha multiplicando os heróis para dar conta da realidade. Sete Homens e Um Destino, de John Sturges, baseado em Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa, também se passava na fronteira mexicana - como Os Profissionais, de Richard Brooks, no qual o dono do capital, o gringo Ralph Bellamy, se revelava um self made fdp. São todos filmes que se colocam ao lado do povo e, no Peckinpah, a trilha musical mexicana inclui a clássica La Golondrina. 'Adonde ira/Veloz y fatigada/La Golondrtina que aqui se va'.

É um pouco a retomada, sem diálogo, da fala de José Martinez de Hoyos no Sturges - camponeses são ligados à terra e pistoleiros são como o vento que passa sobre ela, sem deitar raízes. Existem rasgos de O Tesouro de Sierra Madre, de John Huston, e de Os Doze Condenados, de Robert Aldrich. Mais que um western, talvez seja um filme de guerra no Oeste. Muitos críticos já assinalaram que os os armamentos são pesados, metralhadoras Gatling - Robert Rossen ecoa em Peckinpah, Heróis de Barro, de 1959. Mapache, com seus conselheiros militares alemães, pode estar inscrito na paisagem mexicana, mas tem muito a ver com o Vietnã e a intervenção militar norte-americana. E Mapache tem aquele garoto que vê nele o seu herói. A crueldade das crianças é digna de Luis Buñuel, evoca Los Olvidados. A brincadeira com o escorpião e as formigas é um prólogo para The Hellstrom Cronicle, que o aqui corroteirista Walon Green correalizou em 1971 com Ed Spiegel, e passou à história como um ensaio visionário - mistura de documentário, fantasia científica e horror - sobre a luta pela sobrevivência entre humanos e insetos.

Ao longo da década, e face à desistência dos grandes mestres de Hollywood - John Ford, Raoul Walsh, Howard Hawks estavam se aposentando -, o gênero recrudescera e virara western spaghetti na Itália. Ligados numa tradição cinematográfica, mas sem raízes culturais ou históricas, os Sergios - Corbucci, Leone, Sollima - fizeram a glória dos anti-heróis. Peckinpah levou o western de volta aos EUA. Filmou a degradação dos heróis fatigados, mas não desistiu da honra que, no limite, é o que une o Bunch. O western já vinha mudando, mas nunca mais foi o mesmo depois desse filme. O próprio Peckinpah voltou às paragens do Oeste, às vezes em ambientação contemporânea - Dez Segundos para Viver, com Steve McQueen, Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia, com Warren Oates, e Pat Garrett & Billy the Kid, com Kris Kristofferson e James Coburn, e o último, para variar, foi trucidado pelos produtores. Sem ele, e seus pistoleiros, sem a guerra de Cruz de Ferro, em que a prostituta arranca o pênis do nazista com uma dentada durante o sexo oral, não haveria Quentin Tarantino. Não é só questão de gosto, mas como os seus bastardos não há. Peckinpah morreu em 1984, aos 59 anos. 

Onde assistir:

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